A
difusão do computador pessoal mudou aspectos de nossa vida
que jamais poderíamos sonhar. Mas se há um grupo
de indivíduos para os quais o computador pessoal fez uma
diferença vital, é o de pessoas portadoras de deficiências.
Para eles o computador é o passaporte para a inserção
na força de trabalho, a ferramenta que lhes permitirá
romper barreiras, integrar-se à sociedade produtiva e conquistar
os direitos da cidadania plena. Sentado em frente a um micro o
portador de deficiência auditiva ou visual enfrenta ombro
a ombro, e muitas vezes com vantagens, a concorrência de
qualquer profissional que se crê sadio. Eu já
falei disso aqui (a coluna A
última de ceguinho, publicada em outubro de 97,
continua disponível na seção Escritos de
meu sítio, em <www.bpiropo.com.br>) e voltarei a
falar ainda muitas vezes. A importância do tema justifica.
A DMCA, ou Digital Millenium Copyright Act, é
uma draconiana lei aprovada pelo congresso americano e sancionada
pelo presidente Clinton em 1998 que visa proteger a propriedade
intelectual. Em seu artigo 1201 ela afirma que ninguém
deve fabricar, importar, oferecer ao público, prover ou,
de qualquer outra forma, dar acesso a qualquer tecnologia, produto,
serviço, dispositivo, componente ou peça concebida
com o principal propósito de burlar uma medida tecnológica
que efetivamente controle o acesso a uma obra protegida por esta
lei. Isso quer dizer que desenvolver ou distribuir programas
que destravam a proteção de livros eletrônicos
é crime. Eu falei sobre isso dezembro último, no
artigo O primeiro
teste da DMCA, também disponível na mesma
seção de meu sítio (para quem consultar o
artigo, escrito antes do desfecho do julgamento: a ElcomSoft foi
absolvida; detalhes em
<www.pcworld.com/news/article/0,aid,108040,00.asp>).
Achou que os dois parágrafos que abrem esse artigo nada
têm a ver um com o outro? Pois se engana. O artigo de Elsa
Wenzel intitulado Has Copyright Law Met Its Match?
na PCWorld.Com (em
<www.pcworld.com/news/article/0,aid,110783,pg,1,00.asp>)
aborda um efeito perverso (em ambos os sentidos) da DMCA: a impossibilidade
de usar programas sintetizadores de voz, como os excelentes DOSVox
e WinVox, nacionais e gratuitos, (veja detalhes em
<http://intervox.nce.ufrj.br/dosvox/>)
ou os Text-to-Speech e ViaVoice, internacionais, para permitir
que deficientes visuais tenham acesso aos livros eletrônicos,
ou e-books.
Resumindo a questão e poupando o leitor de desagradáveis
detalhes técnicos: há, hoje em dia, no mercado americano,
cerca de cinqüenta mil livros eletrônicos disponíveis,
alguns gratuitos, a maioria não. São obras de todos
os tipos e sabores. Podem ser comprados com cartão de crédito.
Os preços situam-se em torno de US$10, mas há livros
abaixo dos US$ 3. Para lê-los, basta acessar um dos sítios
especializados (experimente <www.ebooks.com/>),
comprar, baixar e carregar o livro em um programa leitor
adrede instalado na máquina (como o Adobe Ebook Reader
e o Microsoft Reader, para micros de mesa ou portáteis;
há também modelos para micros de mão, como
o Palm). A leitura é feita na tela.
O problema é que, para evitar que se compre um livro e
distribua cópias para os amigos, os arquivos são
protegidos. Exatamente o tipo de proteção a que
se refere o indigitado Artigo 1201 do DMCA. E uma proteção
que não se limita a impedir a cópia do arquivo,
mas também de trechos dele, para evitar que o livro seja
reproduzido na base do copiar e colar. E é
esse o fulcro da questão: ao bloquear a reprodução
por outros meios, a proteção impede que os programas
sintetizadores de voz leiam os livros em voz alta.
O que é lamentável, já que veda aos deficientes
visuais o acesso a um universo literário até agora
impensável.
O esquema de proteção não é difícil
de ser burlado. Do ponto de vista técnico, seria uma brincadeira
de criança. Mas do ponto de vista legal a coisa muda. De
acordo com os draconianos termos da DMCA, quem quebrar
o código de proteção de um livro eletrônico,
digamos, para permitir que um amigo portador de deficiência
visual tenha acesso a ele, está sujeito a uma multa de
US$ 2.500. E se reincidir, a multa aumentará dez vezes.
Isso caso prove que a violação à DMCA não
visou lucro financeiro. Do contrário a pena pode chegar
a dez anos de cadeia e multa de um milhão de dólares
(como você vê, o termo draconiano aplicado
à DMCA não é exagerado).
O problema está criado. Organizações defensoras
dos direitos civis, como a IP Justice (<www.ipjustice.org/>)
chiaram. Grupos de defesa dos deficientes visuais, como a American
Foundation for the Blind (<http://www.afb.org/>)
estrilaram. E instituições especializadas em converter
textos escritos em livros sonoros, como a Recording
for the Blind & Dyslexic (<http://www.rfbd.org/>)
foram ao desespero. A favor, que eu saiba, apenas a indústria
do entretenimento com sua proverbial voracidade, que acha que
o material disponível gratuitamente é suficiente
para atender as necessidades dos deficientes visuais. E é
absolutamente contrária a qualquer alteração
da DMCA.
Note que o que se deseja não é desbloquear a proteção,
apenas permitir que os livros eletrônicos, comprados e pagos
pelos portadores de deficiência visual, sejam lidos
pelos programas sintetizadores de voz. É a isso que a Association
of American Publishers se opõe. Atitude equivalente a surrupiar
o dinheiro que os outros depositaram no chapéu do ceguinho...
B.
Piropo