Sítio do Piropo

B. Piropo

< O Globo >
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09/06/2003

< Roubando bala da boca de criança >


Troy é uma bicentenária cidade de pouco mais de cinqüenta mil habitantes. Fica ás margens do Rio Hudson, no condado de Rensselear, perto de Albany, a capital do estado de New York. É a terra de Sam Wilson, que na guerra de 1812 contra a Inglaterra fornecia carne ao exercito americano em barris com as letras “US” (de United States) gravadas na madeira. Letras que, segundo a imaginação dos soldados, referiam-se ao fornecedor, “Uncle Sam” Wilson. Um século depois o Governo americano encampou a lenda e tornou o personagem mundialmente famoso ao usá-lo em uma campanha de recrutamento para a segunda guerra mundial. Troy tornou-se então conhecida como a terra do Tio Sam. Sua escola politécnica, o Rensselear Politechnic Institute, jamais mereceu grande destaque na imprensa. Pelo menos até a semana passada, quando dois de seus alunos, Jesse Jordan e Aaron Sherman, foram condenados a pagar doze e dezessete mil dólares, respectivamente, por usarem programas que permitiam que seus colegas efetuassem a troca de arquivos musicais através da rede do campus universitário. Além deles, Daniel Peng, da Universidade de Princeton, e Joseph Nievelt, da Michigan Technological University, foram condenados a pagar quinze mil dólares cada um pela mesma razão.
As condenações resultaram de ações individuais movidas contra os estudantes pela RIAA, (Recording Industry Association of América), a poderosa associação que congrega as gravadoras americanas. Na verdade, foram o resultado de um acordo firmado há duas semanas entre os réus e a RIAA, cujo pleito inicial era uma indenização de cento e cinqüenta mil dólares por música copiada. Mas, em comunicado distribuído na sexta-feira, 30 de maio, a associação considerou “apropriados” os valores acordados.
Em todos os casos o crime dos estudantes foi usar os programas Flatlan, Phynd e Direct Connect para indexar arquivos de músicas armazenados nos diversos computadores conectados à rede interna dos campi de suas universidades e permitir que tais arquivos fossem trocados entre essas máquinas. Segundo a RIAA, esses sistemas foram “concebidos para permitir o roubo descontrolado de músicas”, o que a associação compara a furtos de mercadorias em lojas. Em nenhum dos casos os programas permitiam que usuários da Internet não diretamente conectados às redes das universidades tivessem acesso aos arquivos.
Até recentemente a cólera da RIAA voltava-se apenas contra pessoas jurídicas, as redes de troca de arquivos musicais como o Napster, fechado há dois anos em conseqüência de uma ação judicial movida pela própria RIAA, e o Kazaa e Morpheus, também alvos de ações (veja artigo de James Nicolai e Scarlet Pruitt, em
<www.pcworld.com/news/article/0,aid,107528,00.asp>).
Mas há alguns meses ela elegeu os campi universitários como alvo principal de sua ira. Como resultado dessa nova diretriz, em outubro passado enviou uma carta a mais de dois mil diretores de instituições de ensino americanas solicitando que eles “informassem os estudantes sobre suas responsabilidades morais e legais relativas aos direitos autorais” ao usar as redes dos campi para intercâmbio de arquivos musicais (veja artigo de Michelle Madigan em
<www.pcworld.com/news/article/0,aid,106959,00.asp>).
As ações contra os quatro estudantes, as primeiras movidas contra pessoas físicas, foram os frutos pioneiros da nova estratégia.
E, ao que parece, são apenas os primeiros disparos do que promete ser uma longa batalha. Porque, segundo nota postada no próprio sítio da RIAA, a associação está usando os programas tipo “chat” (Instant Messaging) para o que ela chama de “Esforço educacional” (que, no entanto, mais parece uma reles intimidação) para “informar os usuários que oferecer músicas protegidas por direitos autorais em redes não hierárquicas é ilegal e que eles enfrentarão conseqüências caso venham a participar dessas atividades ilegais” (veja a nota e o texto da mensagem em <www.riaa.com/PR_story.cfm?id=634>).
Há duas semanas, em um artigo sobre o draconiano DMCA (ainda disponível na seção Escritos de meu sítio, em <www.bpiropo.com.br>), eu afirmei que ao impedir que livros eletrônicos comprados por deficientes visuais fossem reproduzidos por programas de sintetização de voz, a indústria de entretenimento estava roubando o dinheiro que mãos caridosas depositavam no chapéu do ceguinho. Hoje, diante dessa fúria voltada contra pobres estudantes, sou forçado a dizer que eles estão roubando bala da boca de crianças. Em sentido cada vez menos figurado...

B. Piropo