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08/05/1995
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E Gates Franziu o Cenho... >
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Quem reparou primeiro foi Cristina. Que apontou discretamente e cochichou: "Esse cara tá preocupado". Foi então que prestei atenção em Bill Gates. E fiquei vivamente impressionado: o entusiasmo, que ainda há pouco iluminava seu rosto sorridente quando, no centro do palco e sob as luzes dos refletores, se dirigia à uma platéia que o observava sorvendo com veneração cada uma de suas palavras, se esvanecera. Agora, visível apenas das extremidades da primeira fila onde estávamos Cristina e eu, acreditando-se à salvo dos olhares do público por detrás do parlatório - onde, a seu convite, um presidente de banco tentava convencer à platéia que Windows NT era a oitava maravilha do mundo moderno - aparecia um Bill Gates diferente. O homem que costuma acompanhar com profunda atenção - se não por interesse, ao menos por cortesia - os palestrantes que convida para o palco em ocasiões semelhantes, exibia um olhar opaco, perdido, denotando um infinito distanciamento da palestra, da sala e do evento. O corpo balançava inteiro, compulsiva e pendularmente na cadeira, para a frente e para trás, quase sem parar - como dizem ser seu hábito sempre que enfrenta uma situação difícil ou desagradável. O cenho franzido mostrava intensa preocupação. Pela primeira vez vi um Gates que não combinava com a imagem marota e juvenil que costuma passar. Ali, sem dúvida, estava um sisudo senhor, um homem de negócios. E um homem de negócios bastante preocupado. Mas preocupado com que? O evento era o "Microsoft Latin American Enterprise Solutions Conference 1995", uma reunião anual da MS com seus parceiros e solutions providers da América Latina, encerrado com a voz do trono: uma apresentação do próprio Gates, na qual responde a perguntas da platéia. E foi justamente durante essa apresentação, no final da manhã de quinta-feira, 27 de abril, que a curiosa cena se desenrolou. Que diabos estaria preocupando Bill Gates naquela manhã chuvosa de uma Miami quente e úmida? Certamente não era o mais que provável atraso no lançamento de Windows 95. Pois isso ele já havia deixado entrever dois dias antes em Atlanta, no keynote speach do Windows Word, ao afirmar que mais importante que manter a data do lançamento era trazer à luz um produto estável. Na ocasião, exibia um humor excelente. E quando não estava com a palavra, observava atentamente as demonstrações de produtos que está farto de conhecer, como se fossem a coisa mais interessante do mundo. Portanto, seja lá o que estivesse desviando sua atenção agora, era algo novo. Talvez um desdobramento da apelação conjunta da MS e do Departamento de Justiça americano contra a decisão do Juiz Sporkin rejeitando o acordo entre a MS e o DOJ? Era possível, mas pouco provável: as alegações da MS e DOJ sobre a questão haviam sido apresentadas à Corte de Apelação na segunda-feira 24. Antes, portanto, do keynote speach de Atlanta. E, em quatro dias, qualquer novidade ruim já teria vazado. Mas nada se comentava a respeito, a não ser as opiniões de analistas que davam conta que dificilmente a corte de apelação iria afastar o Juiz Sporkin do processo, como solicitavam MS e DOJ, mas que provavelmente o obrigaria a rever a decisão. Tudo ainda muito fluido. Certamente também não seria isso que enrugava a testa de Gates. O que seria, então? Não descobri nem na entrevista de depois do almoço quando, da forma mais tranqüila possível, respondendo a uma pergunta provocativa comparando Windows 95 com o OS/2 (que, juro, não foi feita por mim), Gates decretou solenemente a morte do único sistema operacional decente de 32 bits hoje disponível ao afirmar, com a mais sólida cara de pau, que, embora falar do OS/2 "lhe despertasse agradáveis lembranças do tempo em que fazia viagens semanais para cá (estávamos há poucos quilômetros da IBM em Boca Ratón) para discutir o desenvolvimento do sistema com a IBM", o OS/2 "não tem mais que quatro ou cinco meses de vida". Eu bem que aproveitei o gancho e perguntei se, considerando a decisão do Juiz Sporkin, não temeria ele uma nova investigação antimonopolista com a MS detendo o monopólio de fato dos sistemas operacionais para PCs após o falecimento do OS/2. Não, respondeu Gates. O DOJ havia submetido a MS a uma duríssima investigação por quatro anos sem detectar nenhuma prática comercial injusta além das que foram coibidas no acordo. Tanto que o próprio DOJ havia apelado contra a decisão do juiz. Mas, continuou Gates, ainda que a decisão fosse mantida e o processo reaberto, mais nada seria encontrado contra a MS. Quanto ao monopólio de fato, ele deve-se apenas à superioridade dos produtos da MS e poderá ser revertido tão logo seja desenvolvido um sistema operacional melhor (será que Win 3.x é assim tão superior ao Warp?) E, com um sorriso que me pareceu um tanto debochado, saiu-se com a pérola citada pela Cristina semana passada: "afinal, o fato do público preferir nossos produtos não é pecado" (after all, the fact that people like to buy our products is not a sin). É, tudo parecia na mais perfeita. Mas que alguma coisa estava apoquentando o rapaz, lá disso eu tinha certeza. Porém, como não deu para descobrir o que era, as obrigações jornalísticas haviam sido religiosamente cumpridas, meu velho DX2/66 andava me parecendo cada vez mais lerdo e o resto da tarde estava misericordiosamente livre, fomos às compras que ninguém é de ferro - especialmente quando se está em Miami. Pois não é que na noite daquele mesmo dia, enquanto tentava resolver um problema, deparei-me com a solução de outro? Eis que lá estava eu posto em sossego em meu quarto, dando asas à imaginação na busca de uma forma criativa de contornar a lei física da impenetrabilidade da matéria e enfiar na mesma mala as poucas compras e os muitos badulaques e press-releases recolhidos na Comdex, quando o noticiário da TV chamou minha atenção. Dizendo que, naquela mesma quinta-feira, o DOJ iniciara um processo para bloquear a compra, pela MS, da Intuit, a sofhouse que produz o programa financeiro Quicken. Que, juntamente com a Microsoft Network, era a peça chave na estratégia da MS para dominar mais um mercado, o do comércio eletrônico. Ali estava, enfim, a explicação plausível para o franzir de cenho de Bill Gates. O DOJ, justificando o cancelamento do que seria o maior negócio jamais realizado na indústria do software, alegou que ele "poderia elevar os preços e reduzir a escolha dos usuários no mercado de programas de controle de finanças pessoais". Se a razão foi mesmo essa ou se, como acredita o editor de PC Letter David Coursey, trata-se apenas de uma forma do DOJ "provar que pode ser grande e duro com a MS", respondendo aos que acham um tanto esdrúxula sua apelação contra a decisão do Juiz Sporkin, não importa. O fato é que, por enquanto, o negócio está suspenso. E foi então que me dei conta que, afinal, o homem tem é um bocado de fleugma. Pois apesar da evidente preocupação, ele ainda fazia sua apresentação e respondia as perguntas de nuestros hermanos de latinoamérica como se nada houvesse acontecido, mesmo sabendo que naquele exato momento estavam botando areia em um negócio no qual ele investiu um ano de planejamento. Um negócio de dois bilhões de dólares... E ele só franziu o cenho. Se fosse comigo, eu sentava no meio-fio e chorava... B. Piropo |