Escritos
B. Piropo
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Volte de onde veio
27/02/1995

<Independência>


Quando eu era ainda um garoto (deus meu, quanto tempo isso faz...) havia ali pelo centro da cidade o anúncio de uma livraria (acredito que da Freitas Bastos, mas não estou certo) que me impressionou. Era um grande painel com o rosto de um jovem, semi-encoberto por uma placa de vidro martelado, destes usados quando se quer deixar passar a luz mas não se deseja mostrar com nitidez o que há do outro lado. O vidro encobria boca, ouvidos e olhos do jovem, deformando suas feições. Abaixo, nome e endereço da livraria. Acima, apenas uma frase: "Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê". Um primor de simplicidade, imagem forte, texto enxuto, indo direto ao ponto e transmitindo a mensagem desejada com tamanho impacto que ainda sou capaz de lembrar dela tantas décadas depois. Uma lição de publicidade.

Pois hoje descobri que ali faltava algo. Pois quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê e pior escreve. E descobri de forma dolorosa: há quase dez dias uma cruel conjuntivite tolda esses olhos cansados e os impede de ler mais de dez ou quinze minutos por vez. Para escrever, com fonte de doze pontos em um monitor de dezessete polegadas, ainda dá. Mas ler, impossível. Portanto, tenham complacência com esta Trilha Zero, escrita com dificuldade, por amor à arte e respeito a vocês que esperavam encontrá-la aqui.

A questão é que para cumprir o que tinha planejado, a leitura hoje era indispensável. Não se pode discutir um livro sem consultá-lo e meus planos originais previam para hoje o início dos comentários sobre um par de capítulos do livro "Unauthorized Windows 95", de Andrew Schulman, que foi analisado por mim e pelo Júlio Botelho há duas semanas, aqui mesmo no caderninho. Se vocês leram a análise, sabem que para o leitor comum, mesmo aquele profundamente interessado em informática, o livro é de uma aridez absoluta. Porque lida, essencialmente, com detalhes técnicos do sistema operacional cuja compreensão exige uma razoável base teórica. Mas eu disse também que dois dos capítulos, onde Schulman discute o panorama da indústria de software e a postura da Microsoft nesse contexto, deveriam ser leitura obrigatória para qualquer um que pretenda usar um micro pelos próximos dez anos.

Como eu acho que esse deve ser o caso de vocês e como sei que nem todos terão a pachorra de ler o livro, resolvi trazer para essa coluna as principais idéias e constatações de Schulman sobre o assunto, fazendo meus comentários onde coubessem. O que fica adiado para a próxima semana, se a conjuntivite assim o permitir. Mas, se ainda não posso iniciar a discussão do livro, nada me impede de começar pelo autor. Afinal, quem é esse Andrew Schulman?

Schulman é o homem da PharLap, uma das primeiras empresas a se aproveitar das limitações do DOS e das potencialidades das CPU modernas, lançando um "DOS Extender". Já falamos muito sobre DOS Extenders para voltarmos ao assunto mas, essencialmente, trata-se de um "extensor do DOS", ou seja, um recurso para executar aplicativos DOS no modo protegido, rompendo o infame limite de 640K para programas. E um homem que faz isso tem que ser um programador de mão cheia.

Além de excelente programador, Schulman é um excelente autor de livros técnicos. Tem uma forma leve e didática de expor seus pontos de vista, sempre que possível (e para o desespero dos pouco versados em programação, quase sempre é possível...) ilustrando as explicações com abundantes linhas de código muito bem estruturado.

Mas não param aí as qualidades de Schulman. Porque lhe sobra mais uma que, lamentavelmente, escasseia nos demais autores americanos: é totalmente independente. Diz o que quer e o que pensa, não importando a quem isso possa incomodar. Mesmo que seja à Microsoft (e nesse caso particular, tanto quanto me é dado saber, qualidade partilhada com apenas mais um autor americano, o impávido John Dvorak).

Para ser justo, há mesmo quem diga que Schulman nutre uma certa antipatia pela Microsoft. Talvez seja verdade, já que participou do rumoroso processo movido pela Stac contra a Microsoft, e sua opinião técnica foi favorável à Stac (na verdade, ele menciona o processo no livro - menção que eu citaria se a maldita conjuntivite me permitisse lê-la). E as más línguas alegam que tal antipatia resultou da recusa da Microsoft de licenciar o formato desenvolvido pela PharLap para os arquivos executáveis de 32 bits usados pelas versões de 32 bits de Windows. A PharLap (ou seja, Schulman) alegava que a MS não precisaria investir no desenvolvimento de algo que ela já tinha pronto e testado. Mas as negociações não chegaram a bom termo, e a MS acabou por adotar um formato próprio.

Mas isso são fofocas que correm à boca pequena na alta sociedade micreira, e sabe como é, fofoca é fofoca: ninguém confirma ou desmente. O fato é que havendo ou não antipatia, parece que Schulman conseguiu não deixar que ela se transformasse em parcialidade, já que, ao fim e ao cabo, um balanço das opiniões sobre Windows 95 expostas no livro resulta altamente favorável ao produto, inclusive justificando e aprovando algumas características apontadas pelos críticos como pontos fracos.

Ser um excelente programador, de texto claro e didático, dotado de independência, é uma respeitável soma de qualidades. Por saber explorá-las, Schulman acabou por atingir uma curiosa especialidade: escrever livros sobre os produtos da Microsoft que não contêm a visão da Microsoft sobre seus próprios produtos. Assim nasceram o "Undocumented DOS" e o "Undocumented Windows", obras obrigatórias na estante de qualquer programador que pretenda desenvolver um programa capaz de qualquer coisa que não seja exibir na tela o clássico "Hello World".

Pois esse é o homem cuja visão do panorama atual da moderna indústria de software estaremos discutindo a partir da semana que vem.

Incidentalmente: aproveitem que é carnaval e caiam na gandaia. Se até lá a conjuntivite for devidamente debelada, também cairei: há que testar o modem de um amigo, resolver um problema no meu leitor de CD-ROM, botar um monte de literatura em dia e rodar uns tantos programas novos. E para isso nada melhor que um bom carnaval.

Evoé Momo...

B. Piropo