Escritos
B. Piropo
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29/08/1994

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Era uma vez uma doce princesa que vivia cercada de gatos em um castelo cheio de janelas. Passava horas nelas debruçada, varando noites contemplando as sempre mutantes paisagens. Mas suas janelas tinham certas artimanhas que deixavam a princesa contrariada. Por vezes, enquanto ela, totalmente absorta, contemplava a paisagem, as janelas se fechavam abruptamente com medonho estrondo e nada mais se via que uma negra e sinistra tela com símbolos cabalísticos que, sabia ela, chamavam-se "prompt do DOS". Quando isso acontecia a princesa ficava muito triste, pois tal fenômeno deitava a perder horas de contemplação.

Os magos que freqüentavam seu castelo diziam que janelas são assim mesmo. Elas têm um comportamento imprevisível, são irritadiças como gatas no cio e dadas a tais chiliques se suas dobradiças não estão bem azeitadas. Principalmente quando se fica mexendo nelas o tempo todo, trocando coisas daqui pra lá. Mas a princesa precisava de mexer nas janelas o tempo todo e trocar coisas daqui pra lá, pois esse era seu ofício. E volta e meia as janelas lhe faziam uma desfeita.

A doce princesa era muito querida no reino e tinha amigos de todos os credos. Havia até alguns do reino inimigo, o das maçãs. Outros, como Gracejo, um dos conselheiros da corte, praticavam a cabala conhecida por OS/2. Sempre que Gracejo ouvia as sentidas reclamações da princesa nos umbrais de sua janela, sugeria que ela instalasse um sistema operacional decente e parasse de se aborrecer. Já outros eram janelistas militantes, professavam as artes místicas do grão-mestre Portões e diziam que tais problemas somente aconteciam por questões de configuração. Bastava estudar os alfarrábios sagrados das janelas, descobrir que linhas dos pergaminhos INI estavam tortas, pô-las na ordem certa, recitar cinco vezes as preces da Pequena Mole e espargir um filtro mágico feito com pó de chifres da cabeça de um burro manso e cabelos de ovo de quimera, cozidos por meia hora em leite de pedras, que tudo correria bem.

Tão infeliz andava a princesa com suas janelas que decidiu tomar uma providência. Apelaria para Gracejo e passaria a se debruçar nas janelas dele, não fora sua memória tão curta. Mas tinha pouca, só oito megas, e a lenda rezava que com pouca memória assim as janelas do conselheiro abrir-se-iam tão devagar que daria tédio contemplá-las. É verdade que à boca pequena corriam rumores que os magos de Boca Ratão, um reino úmido e distante, haviam usado seus feitiços para reduzir a voracidade da cabala, fazendo-a se contentar com meros quatro megas. Mas isso ainda estava em um estágio de latência conhecido por "versão beta". E nesse estágio eram perigosos os feitiços, por vezes produzindo resultados inesperados e indesejáveis. Dizia a tradição que quem usasse um feitiço assim imaturo correria o risco de perder todas as receitas, filtros de amor e ladainhas de seu magiciário guardado a sete chaves em um escaninho secreto chamado disco duro. E nada apavorava mais a princesas, cavaleiros, nobres, magos, bruxos, duendes e até meros plebeus que perder os guardados de seus discos duros.

Tão lancinantes eram os lamentos da princesa que foram ouvidos por Botellius, o mais famoso mago do reino. Botellius era uma figura de peso, conhecedor dos mais recônditos segredos das janelas. Ninguém sabia tanto de janelas quanto ele. Nem havia encanto, mal olhado ou esconjuro que resistisse a sua mágica. Tocado pela tristeza da princesa, Bottelius se dispôs a fazer uma pajelança para desencantar suas janelas.

(Consta que à pajelança assistiu também um certo Capitão Caraguatá, cavaleiro andante de fama e coragem irreprocháveis, mas isso não é certo. Há os que dizem que Caraguatá é figura mitológica que só freqüenta as páginas ilustres dos livros de Jorge Amado e não iria perder tempo na coluna de um piropo qualquer. Mas também há quem diga que o legendário Capitão Caraguatá lá estava, aguardando ansioso o fim da pajelança para testar uma magia chamada modem que lhe permitiria ligar suas próprias janelas às de outros castelos de seu reino e até de reinos distantes.)

E foi assim que em um ensolarado domingo chegou Botellius ao castelo. Tão tenebroso vinha e carregado, que pôs nos corações um grande medo: trouxe varinha de condão, seus alfarrábios, discos, disquetes e quase dez arrobas de sabedoria. Aboletou-se e iniciou a luta. Cada gesto seu desencadeava uma medonha reação do encantamento que se havia se apoderado das janelas da princesa. Raios horrendos cortavam os céus e tenebrosos trovões faziam estremecer as colunas do castelo. As janelas resistiram bravamente, mas não há condão capaz de derrotar a ciência de Botellius. Depois de uma tarde e meia de tenebrosa luta, afinal se abriram de par em par, cedendo à magia inconteste do legendário mago. A princesa, afinal, sorria.

Mas não se deram conta princesa, mago ou capitão que o perigo rondava. Escondido na pele do dragão Junior Barbosa do reino das maçãs, nefasto emissário do malévolo bruxo Cansaço. Usando de escusos subterfúgios, alegando insopitável paixão por Cátia, uma das damas de honor da princesa, o dragão se infiltrara no castelo sob o inofensivo disfarce de um gato. E espreitava solerte pelos cantos, esgueirando-se nos desvãos sombrios, esperando a oportunidade de desfechar seu funesto ataque.

Eis que, ao final da pajelança, quando Botellius dava já os trâmites por findos e abria as janelas mais uma vez para o derradeiro teste, rápido como quem furta o malvado vilão Junior Barbosa desferiu seu golpe fatal: em um salto medonho agarrou-se ao cabo de energia e com esforço inaudito arrancou-o da tomada justamente quando Botellius regia o ritual cabalístico conhecido por "boot".

Foi horrível. As janelas se fecharam apocalipticamente e na tela só restou a pavorosa escuridão. Botellius tentou exorcisar o terrível feitiço de Junior Barbosa, mas sua poderosa magia foi em vão. O golpe brutal desferido pelo traiçoeiro vilão foi fatal: o disco duro da princesa tombou inerte a seus pés. E nem os poderes de Botellius ou de qualquer outro mago seriam suficientes para ressuscitar um disco duro cuja alimentação foi subtraída durante o delicado ritual do boot. O dano foi irreparável.

A doce princesa desfez-se em prantos. O mago Botellius sentiu que mesmo a mais forte magia pode ser impotente diante dos cruéis desígnios do destino. E pela primeira vez o Capitão Caraguatá viu triunfar as forças do mal em um castelo por ele velado.

Mas não há conto de fadas sem final feliz. A doce princesa já instalou um novo disco duro com o dobro da capacidade daquele que o vilão feriu de morte. E, de quebra, vieram com ele mais oito megas de memória.

Agora, afinal, ela já pode instalar o OS/2. E usar a versão for Windows, para desfrutar o melhor dos dois mundos, saltando de uma janela para outra toda catita.

E todos viverão felizes para sempre.

B. Piropo