Anteriores:
< Trilha Zero > |
|
|
15/06/1992
|
< UM DESVIO DE CARÁTER > |
Depois de tantos tecnicismos, um pouco de amenidade. E a confissão de uma pequena jaça em meu caráter: tenho o péssimo hábito de prestar atenção na conversa alheia em locais públicos. Principalmente em restaurantes, enquanto espero o garçon trazer meu pedido. O que tem me valido críticas ácidas de minha namorada e alguns olhares claramente inamistosos dos circunstantes quando se percebem observados. Mas não só isso. As vezes esse desvio de caráter tem resultado em interessantes observações. Pois ocorre que há algum tempo estava eu posto em sossego no restaurante de um hotel em Chicago, em plena COMDEX. Na mesa em frente uma senhora e dois cavalheiros conversavam animadamente. Nada de confidencial: falavam, naturalmente, sobre informática. Creio mesmo que nos hotéis de Chicago não se falou em outra coisa naquela semana. E falavam em um tom que era impossível não ouvir. Principalmente para quem tem aquele pequeno desvio de caráter já confessado. E o assunto era de tal forma interessante que perpetrei um insopitável e temerário gesto: levantei-me, pedi desculpas e, tão educadamente quanto possível nas circunstâncias, ofereci-me para participar. Em suma: meti-me na conversa alheia. O que minha namorada, se lá estivesse, consideraria imperdoável. Mas fi-lo, como diria o Jânio, por boas e defensáveis razões. Se não no que toca à educação, pelo menos do ponto de vista jornalístico. Pois ali estavam, naquele oceano de técnicos, especialistas, experts, gurús e afins, alguns espécimens muito particulares e raros: representantes do usuário médio, do homus americanus, pessoas que de uma forma ou de outra encaravam computadores como simples máquinas destinadas a realizar um trabalho. E foram à COMDEX apenas para descobrir como fazê-lo mais eficazmente. A senhora chama-se Carol Christensen Day. É gerente de informática da Mercy Information Systems de Ann Arbour, o CPD de uma organização privada tipo plano de saúde, que presta assistência médica a funcionários de empresas associadas. Os cavalheiros chamam-se Richard W. Lake e Scott M. Loftis, o primeiro presidente e o segundo representante comercial da Oasis Integrated Systems, uma empresa de automação de escritórios que presta serviços principalmente a advogados em Michigan. E discutiam um assunto interessante e, pelo menos para mim, surpreendente, em se tratando de empresas sediadas nos EUA: a distância cada vez maior entre o que se via em uma COMDEX e o que se usava nos escritórios. E, vejam vocês, nos escritórios americanos. Mrs. Day era a que mais se queixava. Pois vinha de um showroom onde tudo o que era lançado exigia máquinas fantásticas, de 386 para cima, telas super VGA de preferência com placas aceleradoras de vídeo, plataformas poderosíssimas. E ia para um escritório onde havia vinte e poucas máquinas operadas em sua maioria por secretárias e operadores que mal usavam um editor de textos e um banco de dados. As máquinas? Ora, todas XT. Trocar por outras mais poderosas? Nem pensar: a firma estava sendo pressionada para cortar custos. A maioria das empresas associadas estava reclamando do valor médio dos atendimentos médicos, e ela teria que continuar se virando mesmo com sua bateria de XTs. E Mr. Lake? Bem, ele prestava assistência a escritórios de advocacia. Com alguns advogados e muitas secretárias. Os advogados tinham seus espertíssimos notebooks. Mas eram poucos: o grosso do trabalho era feito pelas secretárias. Que manejavam mal e mal um editor de textos e um banco de dados. Rodando sob DOS em telas texto. De Windows ou interfaces gráficas em geral não queriam nem saber. Na verdade não tinham o menor interesse em aprender alguma coisa nova se estavam conseguindo dar conta do recado com o que sabiam. As máquinas?. XTs, ora. Trocar? Para que, se o que precisava ser feito era bem feito nos XT? No início não entendi bem a coisa. Olhei de novo para os cartões de visita: não seriam eles de Bengladesh, latinoamérica ou algum perdido país da África setentrional? Não, lá estava claramente: Ann Arbour e Flint. Tudo nos USA. E todo o mundo usando XT. Pois lá estavam aqueles representantes do usuário médio americano reclamando da incrível distância entre o que viam nos salões encantados da COMDEX e o que encontrariam quando voltassem à vida real de seus escritórios. E se queixando de que estavam se sentindo pressionados a fazer upgrades que a rigor não eram necessários. E nem convenientes: os custos de treinamento do pessoal em tempo e recursos financeiros dificilmente seriam justificáveis, pois para os serviços necessários os XT eram mais que suficientes. Além de terem que vencer a resistência de grande parte do pessoal a ser treinado, que simplesmente não queria se dispor a aprender a usar uma nova interface já que a atual era suficiente. Pois assim é. E nós que pensávamos que todo o mundo lá no titio Sam estava dando XT para criança brincar enquanto se penduravam nas coloridas janelas de seus 486! Mas, então, se é assim, quem está rodando os zilhões de cópias de Windows que a Microsoft alega estarem em circulação? Por que esse frêmito que percorre as páginas das revistas americanas de informática cada vez que surge um novo sistema operacional, uma CPU algumas dezenas de MHz mais rápida, um padrão de vídeo com alguns milhares de pixels a mais? A quem interessam esses fantásticos progressos da informática se o grosso da tropa roda mesmo é XT? Não sabe? Ainda não descobriu? Mas é fácil. Novos programas exigem mais máquina e as novas máquinas exigem novos programas. Então, o constante torvelinho de upgrades interessa realmente é às indústrias de hardware e software, uma dependente da outra para que a geração anterior de programas e máquinas fique obsoleta o mais rapidamente possível. E tome novas versões de programas e novas CPUs. Que são avidamente recebidos pelo mercado. Mas que mercado? Quem precisa dessas novidades? Quem roda esses programas? Quem compra essas novas maravilhas tecnológicas? Não sabe? Também é fácil: só quem se interessa por essas coisas somos nós. Não, meu amigo, nós brasileiros não! Quem dera! O nós aí não se refere ao país, mas ao grupo. Pois tudo isso só interessa mesmo a nós, micreiros. Os daqui e os de lá... B. Piropo |