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< Trilha Zero > |
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02/03/1992
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Evoé Momo! Onde estará você lendo esta Trilha? Provavelmente longe de um micro. E curtindo uma ressaca. Em assim sendo, não vamos aumentar sua dor de cabeça. Sejamos amenos, portanto. E nem poderíamos deixar de sê-lo. Pois há um ano quase exato a Cora me tirou do anonimato e me fez rico e famoso. Bem, famoso mesmo, em termos. Afinal, nestas terras tropicais somos poucos os privilegiados que têm um micro e eu admito que para não micreiros a Trilha Zero não é propriamente a leitura ideal para os momentos de lazer despreocupado. Por isto faço jus a não mais que a parcela de fama que mereço, a parte que me cabe neste latifúndio global. E acho de bom tamanho. Mas me fazer rico, isto realmente a Cora conseguiu. E muito. Provo emprestando um pedaço desta Trilha a um amigo. Que nem ao menos tive a honra (e não vai aí exagero algum) de conhecer pessoalmente. Chama-se Francisco Viana e me escreveu este primor: "É noite de chuva. O desconforto provocado pelo calor cede, lentamente, a um frescor suave e grave. O que fazer a estas horas, se o sono pesa as pálpebras mas há uma recusa em desperdiçar o momento? Escrever a um caro senhor, de fisionomia apenas vislumbrada. Nome misterioso: B. Piropo. E o mistério exige cuidados. Homem de pouco tempo, de conhecimento vasto, de discípulos, asseclas e admiradores de todo quilate. Como falar-lhe? Amadurecemos e ainda assim agimos como colegiais. Como diante de uma professora para nós única, sonhamos ser alunos distintos, sem nos dar conta da multidão de iguais que almejam o mesmo que nós. Como falar à professora? Pois é, caro Piropo, séculos se passaram até que de rascunho em rascunho, de descarte em descarte, tomei coragem de, humildemente escrever ao amigo esperando nada mais que ser desculpado pela demora certamente não sentida. Como complicamos as coisas, não é mesmo? Tudo isto para dizer-lhe que o acompanho com olhos atentos, que o admiro pelo que sua coluna de você revela. É que sua atenção para comigo desconcertou-me de vez. Senti-me visto, descoberto em meio à massa, e com isto, cheio de obrigações. Se você não está entendendo, eu explico. Se algum dia o fiz, há muito tempo deixei de cultivar ídolos, gurús e afins, mas acabei rendendo-me ao sentimento de, sem jamais ter privado da sua companhia ou mesmo o prazer de vê-lo, nutrir uma especial simpatia por você. Sua carta chegou em hora de especial atribulação. Não me sentia frustrado, mas tinha a alma cansada. Comoveu-me, então, profundamente, a sua atenção, cordialidade e, permita-me dizer, amizade. De imediato, rabisquei umas linhas. Sou assim: perdulário diante das pessoas que me cativam. Exagero, talvez. Coisa de gente "gauche". Salvo pela lucidez fugidia, preferi abandonar os frutos imediatos de tão afoita reação. Não obstante este arroubo de sensatez, escrevo esta carta com o espírito desarmado que nem sempre tenho. Mais que suas dicas, admirei sua atenção. Mas quero agradecer também por elas. Fiz todas as alterações que você propôs. Tive alguns pequenos problemas que, em parte, consegui resolver. Agora tenho outras dúvidas, mas tenho também um DOS rodando. Oportunamente volto a incomodá-lo com o assunto. Na periferia do mundo da técnica, dos micros, da eficiência e produtividade, entre bits e bytes, a dificuldade mostra sua face com maior freqüência. Parte da vida passa agora pela tela, digitalizada, mas pouco sobra para a realidade do dia a dia. No mundo da técnica há pouco espaço para o romantismo. A própria técnica é um paradoxo. Como disse Ortega y Basset, ela nada mais é que o esforço para economizar esforço. E a pesar da fascinação que proporcionam nas conquistas e desafios, às vezes nos leva para lugar nenhum. Ao ingressar neste mundo, acabei correndo atrás de um presente rápido demais. Descobri-me um mau bailarino, e perco sempre o compasso. E assim, vejo a modernidade de trás de uma janela. É dali que a acompanho. É dali que me encanto com as palavras mágicas do amigo. E foi ali que sua resposta chegou-me e ajudou a suportar o peso em meus ombros. Mostrando que por trás de números, lógicas e fórmulas existem homens que não se confundem com eles. Sou-lhe eternamente grato por isto." (desculpe, Francisco: sua carta não era para publicar. Mas sempre mergulhado em livros técnicos, há muito não lia algo tão bem escrito. A palavra, infelizmente, é um pobre meio para traduzir emoções: um sorriso transmite mais afeição que um tratado. Mas você a maneja com tal destreza e sua carta veio tão prenhe de sentimento que não pude resistir a enriquecer a Trilha com ela, particularmente em uma ocasião especial como esta. Perdôe o abuso. Mas, afinal, amigo é pra essas coisas...) E então, você aí, conhece riqueza maior que ter amigos assim? Pois foi desta forma que a Cora conseguiu me enriquecer. Mas não somente assim. Foi muito além: me ofereceu o privilégio de conviver com gente muito especial. Dos olhos doces da Lilí ao sorriso aberto da Cristina, da sisudez amistosa do Alexildo ao abraço amigo do Luiz, da elegante leveza da Guga ao jeito manso da Luiza, até a meiguice da própria Cora, que guarda no brilho de seu olhar tudo o que tinha de melhor a criança que (inda outro dia) ela foi, com um sorriso e uma palavra de estímulo permanentes para todos e cada um, reclamando jamais e conseguindo sempre, não obstante todos nós, organizar esta loucura mansa e produzir toda a semana um caderno da melhor qualidade. Esta redação é uma festa. E com tal força, e sempre, e tanto, que mesmo em face do maior compromisso, muitas vezes aqui venho sem razão outra que não a mais importante: desfrutar do prazer de aqui estar. A única queixa é a ausência do Rogério, que se bandeou para outras plagas, de quem lamento a perda o convívio mas não da amizade. Pois assim é. Já há um ano. No qual descobri em mim qualidades que desconhecia: cartas tantas, como a do Francisco, chegam. E de tanto lê-las acabo por me convencer que há algo de verdade nelas. Ano que me transformou no escrevinhador que sempre quis ser mas jamais tive oportunidade ou coragem (falta de autocrítica, dirão alguns) de materializar. Um ano, para mim, particularmente feliz. Inesquecível. Hoje é, por isto, um dia muito especial. Olhem pela janela. Liguem o rádio, a TV, Reparem: todo o país comemora. Não é a toa. B. Piropo |