Escritos
B. Piropo
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Volte de onde veio
01/07/1991

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Se vocês estão nos acompanhando nessa trilha, lembram que o DOS e o PC, como naqueles casamentos arranjados de antigamente, estão ligados por sólidos laços desde o nascimento: pois o DOS nada mais é que o sistema operacional desenvolvido especialmente para o primeiro PC. E, como era de se esperar, foi moldado para tirar todas as vantagens da CPU 8088 que o equipava. Principalmente da maior delas: a capacidade de endereçar um mega de memória, muito além e acima do máximo de 64K alcançado pelos micros de 8 bits de então.

Não ocorreu aos responsáveis pelo desenvolvimento do DOS que esse limite, vastíssimo pelos padrões da época, em tão pouco tempo se transformaria em uma camisa de força. Mesmo porquê seria ocioso desenvolver um sistema operacional que pudesse ir além disso: não havia microprocessadores capazes de usufruir dessas facilidades. E ficou resolvido: ao DOS bastava acessar os 1024K que o 8088 enxergava, e nada além disso. E mais: considerando-se que o máximo que se poderia alcançar até então eram 64K, decidiu-se que dez vezes isso seria suficiente para programas. Daí para cima se reservava para uso exclusivo do sistema. Essa é uma limitação irremovível do DOS. Ligada, como se vê, às características do chip 8088, mas que se manifesta em qualquer máquina, seja qual for a CPU. Portanto, o limite de 640K para programas é um defeito congênito do DOS e devido, exclusivamente, às limitações do 8088.

O DOS e o 8088 foram feitos um para o outro. E, como em tantos casamentos, foram felizes enquanto monógamos. Tudo que um tinha era usado pelo outro, e nenhum dos dois precisava de nada que o consorte não lhe pudesse oferecer. Um matrimonio de conto de fadas.

Mas eis que surge o 80286, insidioso, solertemente acenando com suas ilusórias promessas de levar o DOS a recantos onde o pobre 8088 jamais sonharia alcançar, convidando a volteios em um salão imenso de 16Mbytes. E, volúvel, lá se vai o DOS, ansioso por novas experiências, se aninhar nos braços do 286. Esquecendo-se que, tendo sido moldado às limitações de seu antigo consorte, por mais que se esforçasse ficava irremediavelmente cego tão logo cruzasse a barreira de um mega.

O 286, ladino, sabia disso. Como costuma ocorrer nesses casos, ele queria apenas se aproveitar do ingênuo DOS e usufruir de seus programas. E para atraí-lo usou o condenável subterfúgio de assumir uma identidade dupla: apresentou-se em seu modo real, simulando descaradamente um 8088. Mas, como vilão de folhetim, planejava abandonar o DOS a sua própria sorte tão logo encontrasse um par capaz de desfrutar com ele das delícias de seu modo protegido. A união duraria apenas enquanto lhe conviesse.

Mas o destino puniu o 286. Pois o par sonhado que o levaria ao modo protegido tardou a chegar. E quando o fez, tão grande era o número de programas que rodavam sob DOS, que os usuários, embora praguejando contra as suas cruéis limitações, permaneceram fieis a ele, ao invés de abandoná-lo e correr para as vantagens oferecidas pelo modo protegido. Mas sempre ansiando por uma nova CPU que lhes permitisse desfrutar de benesses além de um mísero disco virtual ou outras vantagens menores.

E é então que entra em nossa história, altaneiro, o chip 80386 com seus reluzentes registros de 32 bits. Lançado pela Intel em 1985, prometia tornar realidade o sonho dos programadores: acesso a endereços de 32 bits, um campo contínuo de quatro gigabytes de memória. Além de compatibilidade total com seus antecessores, do 8088 ao 80286. E como o 386 também ansiava por usar os programas do DOS, para conquistá-lo oferece uma prenda irrecusável: o modo virtual.

Pois além do modo real, que compartilha com o 80286, onde a compatibilidade com o 8086 e 8088 é total, e do modo protegido, de onde, ao contrário do 80286, pode tranquilamente retornar ao modo real, o 80386 é capaz de uma verdadeira prestidigitação eletrônica: o modo virtual, no qual é capaz de simular o comportamento não apenas de um 8086, mas de um número praticamente ilimitado deles. E todos funcionando ao mesmo tempo!

Não sei se vocês perceberam o real alcance dessa maravilha: em uma máquina concebida para utilizar plenamente a capacidade de um 80386 se pode simular o funcionamento simultâneo de diversos XT. Como os malabaristas de circo, que mantêm volteando no ar todas aquelas garrafas sem jamais deixar que se choquem, o 386 consegue rodar vários programas ao mesmo tempo sem nunca permitir que um deles interfira com os demais. E isso usando o DOS.

Como era de se esperar, o DOS, já afeito às lides extraconjugais, logo se sentiu atraído por esse personagem sedutor. Já que o 286 não cumpriu suas promessas de felicidade, a ele se entregou. E, dizem as más línguas, estão se dando muito bem.

Pois se não rompeu a irremovível barreira dos 640K, ao menos o 386 ofereceu ao DOS o que jamais lhe tinha sido ofertado: a capacidade de se envolver com diversos programas, cada um em sua alcova, ou nicho de memória. Ainda limitados aos 640K, é bem verdade, mas todos ao mesmo tempo, naquilo que em informática se convencionou chamar de multitarefa, mas que nos folhetins tem outro nome. Porém que, nesse caso, ao contrário do que ocorria nos folhetins, foi muito bem visto pela sociedade. E o casal recente tem sido visto saltitando de felicidade nas máquinas das melhores famílias.

Assim é a vida: é preciso encarar a realidade de frente. E a realidade é que quem pretende usar o DOS tem que se conformar com o limite de 640K para programas. Ou pouco mais que isso, usando memória roubada do vídeo. E não importa se isso se deve a uma limitação do velho e alquebrado 8088: o DOS nasceu assim. E não fornece meios para ultrapassar a barreira, seja qual for a CPU. E temos conversado.

Foi isso que o 286 não soube entender. Confiando nas vantagens de seu modo protegido, imaginou que todos abandonariam o DOS atraídos por ele. Ao contrário do 386, que soube se moldar às limitações do sistema operacional e oferecer vantagens adicionais, propondo uma longa união, o 286 foi concebido para usá-lo enquanto houvesse interesse e descartá-lo tão logo fosse possível. E, como nos folhetins de outrora, foi punido com o abandono. Ou será que, nos dias de hoje, alguém ainda pensa em comprar um 286?

B. Piropo