Sítio do Piropo

B. Piropo

< Trilha Zero >
Volte de onde veio
07/05/2001

< Censura >


Para quem nasceu depois: durante os negros dias em que pairavam sobre nossas cabeças os desdobramentos daquilo que quem dela se locupletou chama de “revolução de 31 de março” e, quem padeceu seus efeitos, de “golpe militar de primeiro de abril”, fomos submetidos a rígida censura. Os fados misericordiosos me pouparam da triste sina de escrever em jornal naqueles dias mas sei, de ouvir dizer, como era dura a vida dos escribas e artistas em geral. Lembro de jornais de grande circulação estampando poesias e receitas culinárias nas primeiras páginas para cobrir os buracos de artigos proibidos. Sei que Chico Buarque teve que trocar de nome para Julinho da Adelaide sob pena de jamais ter novamente suas letras aprovadas. Recordo das poltronas reservadas para os censores nas primeiras filas dos teatros. E quem não soube então que saiba agora: a censura foi de um ridículo tão atroz que chegou às raias de obrigar o fabricante de um absorvente íntimo, o Meds, a trocar a marca porque a antiga soava como o nome do ditador de plantão.

Naqueles tempos não havia internet. Se houvesse, como seria nossa vida de internauta?

Não é difícil descobrir. Em artigo recente no New York Times (disponível em <www.nytimes.com/2001/04/26/technology/26SAFE.html?searchpv=nytToday> apenas para leitores cadastrados) Jennifer Lee comenta a situação na Arábia Saudita. Com a desculpa de proteger a moral e a fé islâmica, o governo proíbe acesso a sítios de conteúdo considerado pornográfico ou atentatório ao Islã e à família real. Como quem decide o que se enquadra nos critérios é o próprio governo e sua equipe de censores (que, em qualquer ditadura, são a escória intelectual da nação, condição imprescindível para se prestar a um papel como esse), o acesso é vetado a todo e qualquer sítio considerado inconveniente. De quebra, do território saudita não se pode ter acesso às salas de bate-papo do Yahoo e similares ou usar serviços telefônicos via internet. E mesmo aos estudantes de medicina é vedado o acesso a páginas sobre anatomia humana devido ao seu teor potencialmente pornográfico.

Mas o problema não se restringe à Arábia Saudita: em todo o Oriente Médio sítios considerados antiislâmicos ou de conteúdo gay têm acesso proibido. Na China a proibição inclui os sítios de jornais e revistas ocidentais, de organizações de direitos humanos e do Falun Gong, um movimento espiritual banido pelo governo. Em Singapura, além dos pornográficos, são proibidos os sítios de dissidentes políticos. Em todo o mundo, onde houver um governo ditatorial há alguma restrição ao acesso à internet. Segundo Lee, a Repórteres Sem Fronteiras, uma organização internacional para defesa da liberdade de imprensa, estima que em pelos menos vinte países o acesso à internet sofre restrições sérias.

Não é fácil, mas pode-se burlar o controle. Na verdade há sítios especializados nisso. Criados para garantir acesso anônimo à internet, fizeram a alegria dos paranóicos e sacanas em geral (que, para não deixar rastros, freqüentavam sítios pornográficos através deles). Para quem está efetuando o controle, parece que o internauta está visitando um sítio inocente quando na verdade está desenvolvendo uma atividade criminosa – como se manter informado sobre o que ocorre fora de seu país. Os principais deles são o Anonymizer (gratuito, em <www.anonymizer.com>, o Safe Web (<www.safeweb.com>, o Silent Surf <www.silentsurf.com> e o The Cloack <www.the-cloak.com>). É claro que os censores, mesmo estúpidos como são, acabam descobrindo o ardil e bloqueiam os endereços dos sítios que o permitem. A coisa vira então um jogo de gato-e-rato: a cada bloqueio são alterados os endereços IP e trocados os nomes de domínio por nomes inocentes escolhidos ao acaso e divulgados aos interessados na base do boca-a-boca ou correio eletrônico. Funciona: burocratas são tipicamente lentos e cada mudança leva um bom tempo para ser bloqueada.

Mas por que abordar o assunto agora, tão longe dos tempos da censura?

A razão é simples: lembrar que existiram. Porque, diante do desserviço prestado ao país por arrudas, barbalhos e magalhães, o que mais me assusta é o desencanto que têm semeado nos corações. Sobretudo nos de jovens que, por desconhecerem os tempos da censura, têm manifestado a crença que, podre como está, melhor seria fechar o Congresso.

É preciso que saibam que não é. Nunca foi. Jamais será. Até mesmo esse Congresso é melhor que um Congresso fechado. Porque desse, pelo menos podemos falar mal. E algum dia, quem sabe, melhorá-lo com nosso voto.

B. Piropo