< Trilha Zero >
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09/10/2000
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< Stallman > |
Estava eu posto em sossego no recesso de meu lar tentando reduzir um pouco a altura da pilha de revistas de informática que se acumula ao lado de minha poltrona aguardando a vez de serem lidas quando, não mais que de repente, liga-me o André Machado acenando com a possibilidade de jantar com Richard Stallman. Dadas às circunstâncias e considerando que o comensal seria ninguém menos que o fundador da Free Software Foundation, pai do projeto GNU e sensação da Linux Expo realizada em São Paulo na semana anterior, não se podia considerar aquilo como um convite: era uma intimação. Botei a revista de volta no topo da pilha e fui me vestir. O homem chegou acompanhado do Djalma Valois (uma figura e tanto; recomendo enfaticamente uma visita à sua instituição dedicada ao incentivo da produção de software gratuito e alternativo, em <www.cipsga.org.br>) e de Beatriz, professora de tango. Barba messiânica, jeito de garotão (depois descobri que é cinqüentão), falando um português sofrível derivado de um razoável espanhol, Richard juntou-se a nós (André, Cora e esse pobre colunista) e sou obrigado a admitir que a primeira impressão não foi das melhores. Sua implicância com certas palavras que não usa e não permite que usem, sua impaciência quando interrompido, seu jeito de se ofender com certas perguntas me levou a cogitar se ficar em casa com minhas revistas não teria sido a melhor opção. Mas a companhia agradável das demais pessoas, o ambiente aprazível e a comida supimpa foram me segurando. Ainda bem. Porque na medida que o papo foi rolando, descobri que Richard é uma figura rara. E rara não por ser estranho ou diferente, mas por ser dotado de algumas das melhores qualidades que um ser humano pode ter. Ele se ofende com certas perguntas porque se acostumou a ouvi-las de gente mal intencionada que as repete com o objetivo de flagrá-lo em contradição (no meio da conversa deixou escapar que “as perguntas que as pessoas fazem revelam suas posições sobre os problemas” – o que me obrigou a dizer que as minhas tinham exatamente o objetivo oposto: entender as dele). Sua impaciência com as interrupções se justifica porque elas impedem que feche seus perfeitos silogismos, montados sempre com uma irrepreensível lógica de programador. E sua implicância com as palavras tem sempre uma razão de ser: ele crê que usá-las mal pode deitar a perder todo o esforço que tem feito na defesa do software livre – a começar pelo desafortunado duplo sentido da palavra inglesa “free”, que tanto quer dizer “livre” quanto “gratuito”, fazendo-o repetir freqüentemente que o sentido de “free” em “free software” deve ser entendido como em “free speech” (livre expressão), jamais como em “free beer” (cerveja grátis), já que o fato de um programa ser livre não implica ser gratuito. Nunca usa nem permite usar em sua presença o termo “pirata” referente a programas porque, segundo ele, a expressão foi cunhada pelos adversários da idéia do software livre para ligá-la a uma conotação criminosa ou moralmente errada (propõe que em seu lugar se use “cópia não autorizada”). E se nega a responder perguntas sobre “propriedade intelectual” porque acha o conceito demasiadamente amplo, adotado por pessoas que pretendem meter no mesmo saco coisas tão diferentes quanto patentes de máquinas e equipamentos (contra o que ele não se opõe) e de software (que ele acha um crime contra a humanidade) misturando conceitos justos com outros moralmente indefensáveis com o objetivo de usar os bons para justificar os maus (sua teoria sobre direitos autorais, que divide em três tipos, é especialmente interessante). Richard tem plena consciência que sua missão é propagar a filosofia do software livre e a ela tem dedicado sua vida com fervor religioso (saiba mais sobre ele e suas idéias na página da FSF em <www.fsf.org/home.pt.html>). Mas faz isso com realismo: quando comentei como era fascinante para um professor de arquitetura de computadores, como eu, jantar com um vulto histórico, já que ele certamente seria citado nas aulas de história da informática, retrucou que provavelmente dentro de algumas décadas ninguém mais se lembraria dele, mas apenas de suas idéias – que, acrescentou com seu humor peculiar, seriam então atribuídas a Linus Torvald. Richard não é rico, muito pelo contrário. Há quase vinte anos, abandonou um emprego de programador no MIT porque achava que programas deveriam ser livres. Dedicou toda sua vida a defender essa idéia e, o que é mais importante, vive rigorosamente de acordo com ela sem jamais violar um único preceito ético por mais que isso lhe custe. Pode-se até não concordar com suas idéias. Mas há que se respeitar um homem assim… B. Piropo |