Sítio do Piropo

B. Piropo

< Trilha Zero >
Volte de onde veio
17/01/2000

< O chabu do bug >


Sobrevivemos ao ano 2000. O tom dos comentários da imprensa não especializada ao constatar que a passagem do ano transcorreu sem sobressaltos foi de escárnio, dando a entender que os tecnocratas haviam feito muito barulho por nada. A única voz que ouvi se levantar em sua defesa foi a do competente e denodado Nelson Ricciardi no artigo "Onde está o bug?" publicado aqui mesmo no Globo em 06/01. Agora, passado o reboliço, vale a pena refletir sobre o que de fato aconteceu.

O assunto foi levantado há alguns anos, quando especialistas em informática passaram a alertar a comunidade técnica para o hábito de usar apenas dois algarismos para o ano e seus possíveis efeitos desastrosos na passagem para 2000. Acrescentavam que, se providências não fossem tomadas, conseqüências terríveis poderiam advir. E, com o objetivo de sensibilizar os responsáveis pela decisão de implementar tais providências, aventaram algumas hecatombes terríveis: pane total nas telecomunicações, colapso nos serviços públicos como transportes e fornecimento de energia e debacle das instituições financeiras. Sem falar no risco iminente de um conflito nuclear acidental. Tais catástrofes, naturalmente, atraíram a atenção da imprensa, que passou não apenas a dar ênfase a elas como a considerá-las inevitáveis.

Foi exagero? No meu entender, se as providências não houvessem sido tomadas, havia sim a possibilidade de tudo aquilo ocorrer. Tanto que, tão logo se conscientizaram do risco, os responsáveis pelas instituições ameaçadas se movimentaram, investindo meio trilhão de dólares na correção dos efeitos do bug, dez bilhões deles no Brasil.

Houve dinheiro jogado fora, claro. Á máxima do saudoso Aporelli que "em toda parte há homens ateus e mulheres à toa" podemos acrescentar que há também otários e vigaristas. Os últimos, aproveitando-se do alarido da imprensa, arrancaram uma grana preta de empresários mal informados para evitar que o bug devorasse seus negócios. Porém, imaginar que as maiores corporações deste planeta jogariam desnecessariamente quinhentos bilhões de dólares nas mãos de escroques tecnocratas para correção de um bug imaginário, francamente, é ser mais pascácio do que teriam sido elas se tal o fizessem.

O resultado é que em um tempo surpreendentemente curto foram revisadas e alteradas centenas de milhões de linhas de código e atualizados bilhões de dólares de equipamentos – neste caso apenas antecipando a troca de máquinas obsoletas que seriam substituídas com bug ou sem bug.

Então, na virada do ano, o que se viu? Um satélite espião americano "deu pau", uma locadora de NY cobrou US$ 91.250 de multa por um alegado atraso de cem anos na devolução de uma fita de vídeo, contabilizaram-se 50 incidentes no Japão (incluindo uma falha no sistema de monitoramento de uma usina nuclear), alguns prisioneiros italianos tiveram cem anos acrescentados às suas penas, cem mil correntistas suecos não puderam acessar suas contas bancárias porque seus certificados expiraram, o estado do Maine, EUA, licenciou automóveis como "carruagens sem cavalo" como em 1900, milhares de máquinas automáticas na Grã Bretanha recusaram cartões de crédito e, em todo o mundo, pipocaram milhões de outros incidentes de mesmo quilate, a maioria dos quais ainda nem sequer foram percebidos. Em suma: ocorreram fatos isolados, exatamente como os especialistas previam caso as providências fossem tomadas – como foram.

Do ponto de vista da imprensa a notícia seria o fato inédito de, por improvável que parecesse, centenas de milhares de instituições públicas e privadas em todo o mundo se movimentarem em uníssono para fazer em tempo hábil exatamente o que era preciso. E funcionou. Incrível, não lhe parece? Mas isso é boa notícia. E boa notícia não é notícia.

No lugar dela, que se viu foi um sentimento de profunda frustração, tipo "o bug deu chabu". Ouvi mesmo um trêfego coleguinha dizer, na televisão, que as "grandes decepções da virada do milênio" foram o bug do ano 2000 e a previsão de que o mundo iria acabar. Decepções, vejam vocês. O tom, frustrado, era de quem desejava que ambos houvessem ocorrido só para poder dar a notícia.

Então me perguntei: se as coisas tivessem efetivamente se passado como ele queria e o mundo de fato acabasse, a quem ele daria a notícia?

B. Piropo