Sítio do Piropo

B. Piropo

< O Globo >
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10/11/2003

< O direito de clonar cartuchos >


Volta e meia escrevo aqui sobre a famigerada DMCA, a draconiana lei de proteção aos direitos autorais que vige nos EUA (os artigos permanecem disponíveis em meu sítio; para encontrá-los basta entrar na seção “Pesquisar” e efetuar uma busca com a expressão “DMCA”). Geralmente escrevo contra. Hoje, vou abrir uma exceção.
Volta e meia escrevo aqui sobre a questão dos cartuchos das impressoras tipo jato de tinta ou laser e como os fabricantes de impressoras acabam se convertendo em vendedores de tinta e toner (caros) oferecendo impressoras por preços atraentes apenas para lucrar (muito) na venda dos cartuchos. Geralmente escrevo contra. Hoje, não vou abrir exceção.
Ocorre que os dois temas confluíram. E, por extraordinário que pareça, nessa confluência nós, os usuários, acabamos por levar alguma vantagem. Ou pelo menos ganhamos um assalto de uma luta que promete ser longa.
Negócio seguinte: ano passado uma das grandes fabricantes de impressoras, a Lexmark, começou a usar nos seus cartuchos de toner para impressoras Laser um circuito integrado (“chip”) que, quando o cartucho era instalado, trocava dados com a impressora e informava que o cartucho era original. Sem o chip, a impressora se recusava a funcionar. Ora, o mercado de cartuchos é altamente lucrativo. Portanto, não faltou muito para que surgisse uma forma de contornar o problema: a empresa Static Control Components (SCC) passou a oferecer aos fabricantes de cartuchos de toner compatíveis com as impressoras Lexmark um chip denominado Smartek que simulava a ação do da Lexmark, permitindo que eles continuassem a fabricar seus clones.
A Lexmark, naturalmente, não gostou. E partiu para o ataque. Alegando que a SCC fabricava chips que continham cópias de “código de computador” cujos direitos autorais lhe pertenciam, algo expressamente vetado pela DMCA, a Lexmark abriu um processo judicial contra a concorrente.
Em fevereiro deste ano o juiz Karl Forester, face às alegações da Lexmark, embargou provisoriamente a fabricação dos chips da SCC enquanto examinava o caso (veja em
<www.pcworld.com/news/article/0,aid,109596,00.asp>.
Mas o processo continuou. E, surpreendentemente, vozes inesperadas se alevantaram a favor da SCC. Porque o que está em jogo não é uma mera cópia de código alheio, mas muito mais que isso. É o direito de fabricar os “lockout devices” (dispositivos de travamento), que impedem o uso de peças de reposição e suprimento fabricados por terceiros. E isso não está no escopo da DMCA.
Uma das vozes a se fazer ouvir mais intensamente foi a da AAIA (Automotive Aftermarket Industry Association), a associação de fabricantes de peças para automóveis, cujos associados empregam quase quatro milhões de pessoas nos EUA e movimentam anualmente 250 bilhões de dólares (veja em
<www.scc-inc.com/special/oemwarfare/pdf_lawsuit/
Prepared Statement Smartek Chip Decision Due Feb28.pdf
>.
Já pensou se a moda pega e os fabricantes de automóveis passam a usar o mesmo expediente? A indústria de peças de reposição vai para o brejo...
Resultado: semana passada, provocado por uma interpelação da SCC, o U.S. Copyright Office, órgão do Governo americano responsável pela aplicação da legislação de direitos autorais, sem discutir se os chips da SCC contêm ou não material cujos direitos pertencem à Lexmark, emitiu um parecer informando que o DMCA não proíbe a prática desse tipo de clonagem. E acrescentou que “desenvolvedores de software podem recorrer à engenharia reversa para contornar a proteção de direitos autorais se este recurso for empregado para obter interoperabilidade com um programa de computador desenvolvido independentemente” (veja em
<www.pcworld.com/news/article/0,aid,113190,00.asp>).
A ação continua em julgamento. Mas o pronunciamento (“ruling”) do U.S. Copyright Office é um poderosíssimo argumento a favor da SCC e, em última análise, de nós, usuários, que poderemos exercer o direito de escolha entre comprar produtos originais de melhor qualidade ou seus clones, a preços mais atraentes.
No caso específico da Lexmark, conheço bem a indústria. Visitei algumas de suas fábricas de cartuchos e sou testemunha do cuidado com que são feitos e da excelência do produto. Mas não posso concordar com sua tentativa de embargar judicialmente a ação da concorrência. Se a Lexmark quer que continuemos a comprar seus cartuchos, que siga se esmerando na qualidade com que os fabrica. Mas não proíba a nós, usuários, de escolher uma alternativa mais barata.

B. Piropo