Semana passada publiquei aqui mesmo < http://blogs.forumpcs.com.br/bpiropo/2011/09/18/e-dai-que-que-tem-qual-o-problema-que-mal-faz/ > uma coluna que, em última análise, discutia valores morais e a forma como têm sido encarados em nosso país. E cujo ponto central era a corrupção. Mas não (apenas) aquela que aparece nas manchetes e nos noticiários televisivos, mas também a que chamei de “corrupção no varejo”, as consideradas “pequenas” violações de preceitos éticos e morais. E citei algumas que se tornaram tão comuns e tanto se vulgarizaram que acabaram sendo toleradas por grande parte da sociedade.
Um tema que, como eu informei logo no início da coluna, nada tinha a ver com tecnologia.
Hoje, volto ao campo da tecnologia, mas sem sair do tema da coluna anterior. Pois vou tecer aqui algumas considerações sobre uma das “pequenas corrupções” mencionadas quase que de passagem na coluna citada. Uma daquelas que, como “todo mundo faz”, acabaram perdendo o caráter de censurável – embora configurem um ato ilegal caracterizado na legislação: o uso de programas piratas (e para que eu não seja acusado de “piratear” imagens: a figura abaixo, como as demais incluídas nesta coluna, é de uso permitido; as demais são de divulgação; esta foi obtida da Wikipedia e tem a característica adicional de ter sido “desenhada” no formato SVG suportado pelos novos programas navegadores; quem quiser consultar o original visite a página < http://en.wikipedia.org/wiki/File:Pirate_Flag_of_Rack_Rackham.svg > “Pirate Flag of Rack”).
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Figura 1: Pirataria |
Antes, porém, de começar a editar este texto e já me preparando para a inevitável pergunta dos leitores, me dei ao trabalho de examinar cuidadosamente a lista de programas instalados nesta máquina que vos fala em busca daqueles que de alguma forma caracterizassem uma instalação ilegal, aquilo que vulgarmente se chama de “programa pirata”.
Não encontrei um sequer.
Apesar disto, volto a afirmar que não pretendo me travestir de paladino da moral e da justiça e muito menos de defensor dos fortes e desoprimidos, as grandes desenvolvedoras de software. Mas quero, sim, assumir uma clara posição de defesa do programador independente ou da pequena empresa que cria programas com dificuldade, os vende a preços acessíveis e justos e cuja sobrevivência torna-se inviável com a disseminação da pirataria desavergonhada. Esclarecendo: chamo de “desavergonhada” aquela pirataria praticada por pessoas como você meu caro leitor ou dileta leitora, que nos demais campos da atividade humana são gente irrepreensivelmente honesta, mas que instalam programas piratas em seus computadores sem se envergonharem, agindo como se esta atividade criminosa fosse algo legal e natural.
Como esta prática teria se disseminado tão amplamente? O que levou pessoas indiscutivelmente honestas, gente incapaz de cometer um delito, a se entregar à prática de um ato ilegal sem o menor constrangimento?
Sim, porque a comercialização, reprodução e uso de programas pirata não somente viola o disposto na lei 9.609, conhecida como “lei do software”, como desrespeita legislação de âmbito internacional à qual o Brasil aderiu por meio de Convenções e Tratados dos quais é signatário (a quem estiver interessado no assunto recomento um longo, porém excelente artigo de Hilton Ricardo Rocha, o < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=149 > “Software & Direito - Definição, Criação e Propriedade”).
Portanto, quem instala programa pirata comete um crime.
E como uma prática criminosa passou a ser tolerada e praticada indiscriminadamente por pessoas inquestionavelmente honestas?
Eu, particularmente, tenho uma explicação. Que nasceu apenas da observação do comportamento de amigos, colegas e conhecidos, de meu próprio comportamento e de minha experiência de vida. Que pode ou não elucidar a questão, já que não tenho como comprová-la. Mas que, como diziam meus ancestrais, “se non è vera, è bene trovata”. Então vamos a ela.
A reserva de mercado e suas consequências
Comecei a usar computador na segunda metade dos anos oitenta do século passado. Naqueles dias, tanto os programas quanto os sistemas operacionais eram em inglês.
Havia, sim, alguns em português. Não lembro o nome, porque ninguém os usava. E não usava por diversas razões. A primeira é que funcionavam mal. A segunda é que eram cópias não autorizadas, mal feitas e mal traduzidas de uma das versões comerciais do DOS original, em inglês, feitas por empresas brasileiras que alegavam terem desenvolvido o sistema quando na verdade o haviam cinicamente copiado do original (o folclore da informática incorpora casos bizarros de situações em que, sem mais nem menos, afloravam mensagens de erro em inglês em um SO supostamente desenvolvido em português por uma empresa nacional).
É que vivíamos na tenebrosa era da ditadura militar em que estava em plena vigência a não menos tenebrosa lei da reserva de mercado da informática segundo a qual era proibido usar qualquer hardware ou software que não fosse desenvolvido ou fabricado no país.
Estas empresas, então, praticavam pirataria. Mas era uma pirataria oficial, protegida pelas autoridades militares da época que haviam, com o inacreditável apoio da esquerda nacionalista, forjado a maldita lei da reserva de mercado que, quem podia, descumpria. Pois quem descumpre leis ditatoriais, como ladrão que rouba ladrão, tem cem anos de perdão.
Começou assim a se formar a mentalidade de que usar produtos de informática contrabandeados e programas pirata eram atividades perfeitamente aceitáveis por descumprir uma lei claramente injusta e burra. O que fez com que se tornassem práticas usuais e correntes. E todos a ela aderiram. Inclusive este que vos tecla.
Mesmo porque não fazer isto era se expor a extorsão.
Por exemplo: no final dos anos oitenta eu andei me metendo a programar. E programava em C e Assembly. Portanto precisava de um bom compilador.
Havia o da Microsoft, que todo o mundo pirateava. Seu maior concorrente era um soberbo conjunto de programas desenvolvidos pela Borland, o pacote “Turbo”. E, na época, havia no Largo do Machado um “centro comercial de informática” constituído por meia dúzia de arapucas com aspecto de lojas que vendiam hardware supostamente nacional e programas, alguns importados, tudo isto a preços extorsivos.
Passei por lá para verificar o que conseguiria comprar para compilar meus programas. Encontrei o Turbo C da Borland, versão 1.5, por um valor equivalente a pouco mais de mil dólares americanos. Não dava. Afinal, eu programava por prazer, não por profissão, e gastar aquela grana preta não estava nos meus planos.
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Figura 2: Turbo C for DOS |
Mas acontece que por alguma razão eu tinha agendada uma viagem aos Estados Unidos mais ou menos naquela ocasião. E lá, encontrei (e comprei) o mesmo Turbo C, porém versão 2.0, por pouco mais de cem dólares (a figura 2 mostra a capa da embalagem da versão 3.0). Menos de dez vezes o preço que me haviam cobrado aqui por uma versão desatualizada. Uma diferença injustificável ainda que se levasse em conta os impostos escorchantes.
Conclusão: naqueles dias, comprar software legal era se submeter a um tipo de extorsão legalizada. E, pior: legalizada por um dispositivo institucional criado pela ditadura militar para beneficiar meia dúzia de seus protegidos. O resultado disto é que esta prática generalizou-se e passou a ser considerada mais ou menos como uma ação em legítima defesa.
Foi assim que o uso de software pirata, mesmo ilegal, acabou se tornando prática tida como justa e aceitável entre usuários de computadores. E não apenas os usuários domésticos: a maioria das empresas também recorria a eles.
Pois bem, as coisas mudaram.
Dá para viver sem piratear?
Hoje, pode-se comprar computadores (com sistema operacional instalado), acessórios e periféricos importados por preços acessíveis, mesmo considerando os impostos, que continuam escorchantes. E pode-se comprar software via Internet, em português, diretamente do fabricante, sem impostos (sim, é legal) pelos mesmos preços praticados no mercado internacional. E, na maioria dos casos, são preços bastante razoáveis.
É claro que há os pacotes e, estes, nem sempre são baratos. O MS Office 2010 Professional, por exemplo, está sendo oferecido (acabei de verificar) por R$ 1.399 em uma destas grandes revendas. Um preço salgado. Mas esta mesma revenda oferece a versão “Home and Student” com praticamente tudo o que se usa no dia-a-dia, por R$ 199 à vista ou em doze parcelas de R$ 16,99. Convenhamos: instalar uma versão pirata podendo usar o original por menos de vinte merrecas mensais só se justifica pelo hábito de usar programas pirata. E se porventura alguém alegar que não dispõe nem mesmo dos R$ 16,99 mensais, convém lembrar a existência do OpenOffice, já na versão 3.0, que pode ser obtido em português diretamente do sítio < http://download.openoffice.org/ > OpenOffice.Org que embora não ofereça todos os recursos disponíveis no MS Office, permite fazer um trabalho perfeitamente satisfatório pela quantia de, exatamente, zero merrecas. De graça. “Na faixa”, como dizem os paulistas.
E quem comprar um computador com a limitadíssima versão Starter de Windows e achar que ela não atende suas necessidades, pode comprar uma versão Home Premium por pouco mais de R$ 266, que também podem ser divididos em doze parcelas de pouco mais de vinte reais. Ou pode usar uma das versões gratuitas de Linux caso seja adepto do software livre. Em suma: só usa sistema operacional pirata quem quer.
Caros, mesmo, só os pacotes profissionais. O soberbo pacote CS5 Design Premium, da Adobe, custa uma pequena fortuna: mais de cinco mil dólares americanos. Mas trata-se de um conjunto extraordinariamente poderoso de aplicativos para uso por profissionais altamente qualificados. Mas o pacote Standard pode ser comprado pela metade deste preço e seu programa principal, também para uso profissional, o Photoshop, custa pouco mais de cem dólares. Isto sem mencionar que, como se trata de um produto para uso profissional, em geral é adquirido por empresas que, também em geral, passam de versão em versão, e o custo da atualização é uma fração do preço do pacote. Mas note que estamos falando de um produto magnífico para uso profissional. Eu posso garantir sua qualidade porque o tenho instalado em minha máquina (e somente posso tê-lo porque tive o privilégio de receber uma cópia de cortesia da Adobe, do contrário teria que recorrer a outros programas para realizar o trabalho que normalmente executo com ele: ilustrações com o Fireworks e Adobe Ilustrator, animações com o Flash e retoques com o Photoshop para minhas colunas e aulas). Mas quem realmente precisa dele, o usa profissionalmente e pagou por ele, há de atestar que a relação custo benefício é compensadora.
Mas são poucos, pouquíssimos, os que efetivamente necessitam de um software de custo tão elevado. Isto porque há dezenas e dezenas de produtos semelhantes que custam uma pequena fração do preço de um Photoshop – e, naturalmente, oferecem uma pequena fração de seus recursos – mas nem por isto deixam de prestar um serviço satisfatório para o usuário amador que deseja apenas melhorar o aspecto de suas fotos.
Tudo isto sem falar nas versões gratuitas.
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Figura 3: SolveigMM AVI Trimmer |
Por exemplo: de quando em vez eu posto um vídeo para ilustrar minhas colunas. Não sou um profissional do ramo e em geral meus vídeos são de qualidade, no mínimo, duvidosa. Mas seu objetivo não é estético nem artístico, apenas ilustrativo. Por isto tudo o que preciso para editá-los é de um programa que me permita “apará-los”, reduzindo sua duração eliminando trechos desnecessários. Procurei a solução mais simples e mais barata. E encontrei um programeto chamado SolveigMM AVI Trimmer (Veja figura 3) que, como o nome indica, nada mais faz que “aparar” vídeos no formato AVI.
Como pouco faz, pouco exige do usuário: é de uma simplicidade franciscana e de uma eficiência inacreditável. Seu custo é zero. A empresa que o oferece, a < http://www.solveigmm.com/ > Solveig Multimedia, desenvolve produtos mais sofisticados – e pagos – para edição de vídeo (os mais caros, Video Splitter e HyperCam, custam menos de trinta euros, um preço bastante razoável). Como tudo o que eu precisava era o Trimmer, gratuito, fácil de usar e eficaz, baixei-o e instalei-o. Se precisasse de mais algum recurso que ele não oferecesse mas que estivesse disponível em um de seus irmãos, teria baixado uma versão de avaliação que, caso efetivamente satisfizesse minhas necessidades, teria sido paga e instalada depois de testada.
É simples assim. E dá menos trabalho que fuçar os sítios “especializados” em fornecerem números de série de produtos em busca de um que me permitisse cometer a ilegalidade de usar o programa sem pagar. Além de mais seguro: grande parte destes sítios oferecem, gratuitamente, junto com o número furtado, um programa mal intencionado que pode acabar dando um prejuízo maior ao usuário “esperto” do que o que ele teria que pagar pelo uso legal do programa.
Eu não sei em que época se deu minha “conversão” (espero que há tempo suficiente para que os crimes de uso ilegal de software cometidos e aqui confessados tenham prescrito). Mas a partir de certo momento abandonei a prática contumaz da ilegalidade de instalar programas pirata e passei a agir exatamente como descrevi acima. Paguei por minha licença do WinZip, apesar de dispor facilmente de um número de série que me permitia instalá-lo gratuita, porém ilegalmente. Como paguei pela versão do Genie Timeline, um excelente gerenciador de cópias de segurança, do RealConverter, um software capaz de converter qualquer formato gráfico em qualquer outro formato gráfico existente, do MVRegClean (pela segunda cópia porque achei justo; a primeira tive o privilégio de ganhar um número de registro de cortesia de seu brilhante programador, Marcos Velasco) e de mais um monte de pequenos utilitários que se aninham no meu disco rígido. Efetuo o pagamento com cartão de crédito ou usando a conta que para isto mantenho no PayPal. Nunca tive o menor problema nem qualquer prejuízo.
É claro que como não me apetece jogar dinheiro fora, tenho também um número razoável de pequenos programas gratuitos. Que nem por isto deixam de cumprir suas funções com brilho e eficácia. Além do SolveigMM já citado, lembro do Core FTP Lite, que uso para uma ou outra transferência rápida de arquivos para os sítios que mantenho na Internet, o ImgBurn, que uso para criar imagens de discos e copiá-las de volta para outro meio suporte, do inexcedível Skype e do mais que excelente ScreenShot Pilot, isto só para mencionar os que uso mais frequentemente. E não sinto a menor necessidade de apelar para qualquer software pirata.
Por que não piratear
Agora que acabo de escrever o subtítulo acima me ocorreu o quanto é surreal a necessidade de justificar a razão de não praticar uma ilegalidade. Mas, surreal ou não, em um país onde esta prática é tão disseminada, ela me parece necessária. Então vou explicar as razões que me levaram a não usar programas piratas.
Foi, naturalmente, uma decisão pessoal. Na verdade nem posso afirmar que tenha sido uma “decisão”. Considero que “decisão” é uma resolução tomada após avaliar uma situação e sopesar seus prós e contras. Neste caso não foi o que aconteceu. Pelo contrário, foi um conceito que, pouco a pouco, foi se cristalizando em minha consciência a partir de uma sucessão de eventos.
Começando com o fato de que, com a revogação da sinistra reserva de mercado da informática, eu poderia ter acesso aos programas que precisasse desde que pagasse o preço. Portanto, o acesso legal estava garantido. O que faltava era grana. E bota grana nisso.
Depois fui constatando que estes preços, inicialmente extorsivos, com o estabelecimento da saudável concorrência causada pela abertura do mercado foram se tornando cada vez mais justos e acessíveis. Já dava para comprar sem abrir falência.
Mesmo porque desenvolver um bom programa tem um custo. Até o programador independente que oferece um pequeno utilitário em regime de “shareware” ou em troca de uma contribuição voluntária, gastou algumas centenas de horas de trabalho para desenvolver e testar seu produto. Recusar-se a remunerá-lo por este trabalho, especialmente se o programa é bom, significa desestimulá-lo a continuar criando novos programas, secando assim uma boa fonte de software a preços razoáveis.
A tudo isto se somou o natural desconforto que eu sentia ao constatar que praticava um ato ilegal.
Finalmente, quando me conscientizei que, escrevendo em veículos que atingem centenas de milhares de leitores, eu definitivamente não me sentia bem cumprindo minha obrigação ética de condenar o uso de programas piratas enquanto na prática contrariava aquilo que pregava sem que tivesse qualquer necessidade de fazê-lo, criei o hábito singular, vejam vocês, de pagar pelos programas que uso quando não obtenho, legalmente, acesso gratuito a eles.
E deixei, espero que definitivamente, de ser um usuário de programas piratas.
De novo: não sou paladino da moral e dos bons costumes, definitivamente não me considero uma virgem em prostíbulo e não acho que sou mais ou menos honesto que qualquer outro de meus concidadãos. Nem escrevi esta coluna para pregar minhas virtudes – mesmo considerando que, sendo poucas, merecem certa divulgação.
Nada disto.
Escrevi esta coluna apenas para explicar por que não uso programas piratas e instar a quem a ler a fazer um exame de consciência sobre sua própria atitude em relação à questão. E a agir de acordo com sua própria consciência, princípios, valores morais, formação ética e, naturalmente, necessidades.
Em outro país, que não tivesse sido subjugado por uma ditadura burra que impôs uma reserva de mercado absolutamente estúpida que praticamente coagiu os cidadãos mais honestos à constrangedora prática de uma ilegalidade tão disseminada que acabou por turvar a diferença entre o certo e o errado, uma coluna como esta, mais que desnecessária, seria inconcebível. Como justificar o fato de um indivíduo se dar ao trabalho de escrever algumas páginas apenas para explicar as razões pelas quais cumpre a lei? “Confessar”, como que se desculpando, que não usa programas piratas?
Pois aqui ela me pareceu necessária.
Mas isto não é o pior.
O pior mesmo é que, para alguns, ela parecerá absurda. E, com perdão da palavra, sei que muita gente a considerará uma basbaquice. Um mico, como está na moda.
É só esperar os comentários...