Escrevo sobre computadores em sítios da Internet e jornais de grande circulação desde 1991. Tempo suficiente para que quem eventualmente acompanhe meus escritos ao longo de tantos anos esteja ciente de minha opinião sobre a Internet e seus desdobramentos. E quem o fez sabe que, definitivamente, não sou puritano, não dou palpite sobre a vida e as atitudes alheias, sou inteiramente favorável a que cada um exponha sua opinião livremente, respeito opiniões divergentes das minhas e, sobretudo, sou visceralmente contra qualquer tipo de controle e censura seja na imprensa formal, seja – principalmente – na Internet. E, para quem duvidar, está no ar o Sítio do Piropo que guarda, sem exceção, tudo o que escrevi e publiquei em todos os veículos com os quais venho colaborando nestas duas décadas. Portanto minha posição nesta questão, além de conhecida, é fartamente documentada.
Isto posto, convém dizer que tenho netos.
Pôr um computador com acesso à Internet nas mãos de uma criança de dez anos é, literalmente, abrir-lhe as portas do universo, fornecer-lhe acesso a uma quantidade ilimitada de informação, pô-la em contato com o mundo.
Para o bem e para o mal.
É claro que quem sabe, como eu, o quanto o uso de um computador pode ser benéfico para a educação e formação cultural de uma criança não pode sequer pensar em privá-la deste contato. Meu neto mais velho tem computador se bem me lembro desde os seis anos de idade. E os demais, quando chegarem a esta idade, certamente também terão. E usufruirão das vantagens que o contato com um computador lhes trará. Este é o lado “do bem”.
A Internet foi “inventada” (ou, pelo menos, desenvolvida) por gente de bem em meados da segunda metade do século passado. Era um grupo de acadêmicos, cientistas, estudiosos e técnicos deslumbrados com a possibilidade de compartilhar conhecimentos e trocarem informações sobre seus projetos, suas teses, suas dúvidas e certezas e, com o advento do correio eletrônico, sobre tudo o mais, desde o clima até o excelente restaurante que foi inaugurado nas imediações do Campus em que trabalhavam.
Estou certo que naqueles dias nenhum deles pensou em duas coisas. A primeira foi o brutal desenvolvimento que sua criação viria a sofrer. A segunda, das potencialidades de ser usada para o mal. Por isto nenhum deles se preocupou em dotar o sistema de qualquer possibilidade de controle (pelo contrário: quem tem algum conhecimento sobre a história da Internet sabe que ela foi engendrada pela inteligência militar americana durante a guerra fria visando estabelecer um sistema de comunicações congenitamente anárquico, sem qualquer tipo de controle central, portanto imune a uma tentativa de bloqueio através da inativação deste controle central; e que foi entregue pelos militares à comunidade acadêmica por ser esta a forma mais eficaz de fazê-la prosperar e crescer em tempos de paz).
Em suma, a Internet foi criada por gente de bem para ser usada por gente de bem para o bem. Gente que jamais imaginou que um dia ela seria usada para o mal.
Mas, como disse Nelson Rodrigues, a humanidade não deu certo e logo se descobriu que não somente havia possibilidades de usá-la para o mal como também, da forma pela qual ela foi concebida, estas possibilidades eram quase ilimitadas.
Dia destes, em busca de uma mensagem extraviada que poderia ter sido capturada por um dos muitos filtros contra programas e mensagens mal intencionadas que fui obrigado a instalar nesta máquina que vos fala, tive que inspecionar as (diversas) relações de mensagens neles retidas. Em um período de dois meses foram, literalmente, milhares delas.
Havia de tudo. Um grande número delas exibia uma tocante preocupação com o tamanho e higidez de certas partes de minha anatomia. Outras ofertavam poções milagrosas que, garantidamente, reavivariam meu combalido apetite sexual, me fariam perder peso ou me curariam dos males mais diversos. Havia as mais diretas que ofereciam mulheres de seios fartos e outros tantos atributos igualmente opulentos. Havia até mesmo, vejam vocês, a mais espantosa contradição em termos com que jamais me deparei em toda minha existência: a oferta de uma prostituta grátis (????!!!!).
E estas eram as inofensivas. Afinal, as aceita quem quer e quem compra uma porcaria destas talvez até mereça perder uma graninha.
Mas há também as particularmente perversas, aquelas que, se inadvertidamente abertas, ou caso a vítima se deixe levar pelo “clique aqui” sem ter instalada uma proteção eficaz contra programas mal intencionados, acabam por fazer uma destas pragas se infiltrar no micro, fazendo o usuário correr o risco de sofrer sérios prejuízos caso seus dados pessoais e senhas bancárias caiam nas mãos dos pilantras que engendraram as armadilhas. Que, espertamente, se aproveitam das fraquezas humanas, seja a curiosidade mórbida (“veja as fotos do último escândalo provocado pela famosa fulana”), seja a cupidez (“preciso de ajuda para retirar uma fortuna retida pelas autoridades da república da Algaravia” – eu sempre achei que esta palavra deveria ser o nome de um país) ou meramente pela estupidez (“aqui vão as nossas fotos naquele motel, amor”). Abro aqui uma exceção para os que recebem aquela famosa mensagem “eu não queria te contar, mas aqui estão as provas de que você está sendo traído”. Pois, quem recebe uma mensagem com este teor oriunda de um desconhecido, clica no atalho e tem a máquina contaminada, além de corno é burro e merece o castigo.
Em resumo: à revelia da gente de bem que a criou e desenvolveu, a Internet acabou transformando-se em uma espécie de valhacouto de pilantras, mequetrefes, safados, vigaristas, trapaceiros, patifes e todos os demais tipos de trapalhões que a criatividade humana voltada para o mal possa produzir.
Mas tudo isto prejudica os adultos que, pelo menos em princípio, devem saber se cuidar.
Por esta razão costumo me opor a qualquer regra, lei, norma ou seja lá o que for que imponha qualquer tipo de controle, restrição ou censura sobre o que se diz ou faz na Internet. Pois, salvo raríssimas exceções, estas iniciativas partem ou de governos autoritários que desejam amordaçar a imprensa de seus países ou, pior, de políticos calhordas que pretendem impedir que seus desmandos, vigarices e desvios de dinheiro público caiam no conhecimento público.
Mas e as crianças?
Bem, estas precisam, efetivamente, de proteção.
Meu receio é que, com a desculpa de protegê-las, apareçam os calhordas de sempre querendo impor censura, controle e restrição de conteúdo na Internet.
E qual seria então a solução?
A meu ver ela se desdobra em duas vertentes (além, naturalmente, da educação e da permanente atenção dos pais, atitudes que nem cabe comentar por ser o mínimo que se espera dos responsáveis pela formação moral de uma criança seja no que toca à internet seja em todos os demais aspectos da vida). A primeira, que não será assunto da coluna de hoje mas que um dia poderei discuti-la se esta for a vontade dos leitores, são os recursos tipo “segurança familiar”, “controle dos pais”, filtragem de sítios e relatório de atividades oferecidos pelos sistemas operacionais ou programas específicos. Que, para que sejam eficazes, basta que os responsáveis pelas crianças aprendam a usá-los – e todo aquele que entende em sua plenitude o significado do termo “responsável”, aprenderá.
A segunda são as iniciativas oficiais.
E é de uma delas que trataremos aqui.
Trata-se da FTC (Federal Trade Commission), agência do Governo Americano responsável pela defesa do consumidor. Cabe a ela, entre outras tarefas, fiscalizar e administrar a aplicação do COPPA (“Childrens Online Privacy Protection Act”, ou lei de proteção da privacidade de crianças na Internet). Um dispositivo legal que, efetivamente, impõe restrições e controle ao comportamento de pessoas e instituições na rede – justamente aquilo que eu me declarei frontalmente contrário alguns parágrafos acima – porém aplicável única e exclusivamente a questões que envolvem crianças.
Um bom exemplo pode ser encontrado no próprio sítio da FTC: a < http://ftc.gov/opa/2011/08/w3mobileapps.shtm > notícia sobre a multa aplicada a uma empresa que desenvolveu aplicativos para serem usados por crianças em dispositivos móveis, mais especificamente, iPhone e iPod Touch.
Acontece que um dos artigos da COPPA exige a autorização dos pais para a obtenção de informações sobre crianças via Internet. Em particular, nenhum dado considerado pessoal pode ser enviado por uma criança sem o consentimento paterno.
A empresa “Broken Thumbs Apps” desenvolveu e distribuiu um conjunto de programas para crianças. Entre eles consta a série de jogos para meninas intitulada “The Emily Apps”, que inclui os “Emily’s Girl World”, “Emily’s Dress Up” e < http://itunes.apple.com/us/app/emilys-dress-up-shop/id396752996?mt=8 > “Emily’s Dress Up & Shop”. Foram baixadas mais de 50 mil instâncias destes aplicativos (veja figura 1, obtida no sítio da empresa).
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Figura 1: Emily’s Dress Up
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Os jogos, entre outras coisas, permitem que as meninas criem modelos virtuais e desenhem roupas para bonecas Além disto, de acordo com o sítio da FTC, o conjunto de aplicativos encoraja as crianças a enviar seus comentários à fictícia “Emily” por correio eletrônico e compartilhar suas opiniões no “Emily’s Blog”. O problema é que tudo isto é feito sem autorização expressa dos pais, o que contraria a lei.
A FTC alegou que a empresa, além de obter milhares de endereços de correio eletrônico de crianças usuárias das “Emily Apps”, encoraja estas crianças a divulgarem informações pessoais, que são publicadas em páginas de discussões (“message boards”) de seu sítio. E estas atividades são expressamente cobertas pelos artigos da lei, que não somente obriga os responsáveis pelo sítio a notificar os pais antes de coletar os dados como também exige que o sítio contenha e exiba claramente em local de destaque uma política de privacidade clara, completa e à altura da compreensão das crianças.
E por considerar que as atividades desenvolvidas no sítio violaram a lei, a FTC não apenas obrigou seus responsáveis a remover todas as informações pessoais coletadas das crianças que tiveram acesso a ele como lhes aplicaram uma multa no valor de US$ 50 mil.
Acho que este tipo de controle, quando bem feito, talvez não resolva o problema, mas pode ser uma boa ajuda. Ele tem a vantagem de ter seu campo muito bem delimitado, exercendo controle exclusivamente sobre atividades infantis em sítios frequentados por crianças e, o que é igualmente importante, deixando nas mãos dos pais o poder de decidir se as informações podem ou não serem postadas.
Uma visita ao sítio do FTC, especialmente à < http://business.ftc.gov/documents/coppa-rulemaking-and-rule-reviews > página dedicada à COPPA, suas revisões e discussões públicas, pode ser bastante esclarecedora. Mas, para quem está efetivamente interessado em garantir que suas crianças possam navegar com segurança na rede, talvez o melhor seja uma visita à página < http://www.ftc.gov/bcp/edu/microsites/livinglifeonline/index.shtm > “Living Life Online” (Vivendo a vida conectado), um guia dirigido às crianças e adolescentes – mas ao qual a visita dos pais deveria ser obrigatória – sobre como se comportar na Internet. Que aborda praticamente todos os aspectos que interessam, inclusive um que está bastante na moda, o “cyberbullying” (usar a rede para perseguir e abusar – ou seja, fazer aquilo que antigamente se chamava de “encarnação”). Mas não apenas ele.
Veja como a página aborda a delicada questão da exposição à pedofilia. Aqui está, em tradução livre, todo o capítulo sobre “sexting”:
“You may have heard stories at school or in the news about people sending nude photos from mobile phones – called "sexting." Don't do it. Period. People who create, forward, or even save sexually explicit photos, videos, or messages put their friendships and reputations at risk. Worse yet, they could be breaking the law” (Você pode ter ouvido na escola ou no noticiário histórias de pessoas que mandam fotografias nuas usando telefones celulares – uma prática chamada “sexting”. Não faça isto. Ponto final. Pessoas que criam, enviam, ou mesmo gravam fotos, vídeos ou mensagens sexualmente explícitas põem suas amizades e reputações em risco. Pior ainda: podem estar violando a lei).
É isso aí. Curto e grosso: Diz o que é, diz que não pode e explica o porquê.
É assim que se faz. É assim que se educa. E este é o único tipo de censura que eu acho aceitável: a que visa proteger as crianças, que não sabem se defender sozinhas.
Em tempo: para quem não tem conhecimento suficiente do idioma inglês para tirar proveito do sítio do FTC, lá mesmo encontra algumas páginas em espanhol, o que talvez ajude. Eu procurei o guia “Living Life Online” neste idioma, mas infelizmente não encontrei. Se algum leitor encontrar e puder ajudar, postando o URL nos comentários, eu agradeço em nome de todos os pais e avós.
E olho vivo, que com criança não se brinca.
Até a próxima.