Windows 8 vem aí. E, ao contrário das duas versões que a antecederam, a rejeitada Windows Vista e a bem aceita Windows 7 das quais a MS liberou versões beta mais de um ano antes do lançamento, pouco se sabe sobre ele.
Não se trata de um acaso. Trata-se de um esforço consciente da Microsoft se não para esconder, certamente para divulgar a conta-gotas as características do futuro produto.
Só quem sabe razão desta estratégia são os marqueteiros da MS, mas que ela existe é fato inegável. Tanto assim que, na última Computex, o “Show Daily”, uma publicação que pode ser considerada, digamos, o “Diário Oficial” do evento, trazia um artigo no qual os representantes das maiores empresas fabricantes de placas-mãe, que por dever de ofício precisam saber detalhes de sistemas operacionais muito antes do lançamento, apontavam suas baterias contra a MS criticando veementemente esta política de não divulgação (e as criticas parecem ter frutificado, posto que dois dias depois já se podia ler na mesma publicação os comentários elogiosos sobre os resultados de uma reunião fechada sobre Windows 8 promovida pela MS entre seus representantes no evento e os dirigentes das mesmas empresas que haviam reclamado).
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Figura 1: Sinofsky em sua palestra na CES 2011 |
Portanto, para se ter uma ideia de como será Windows 8, é preciso garimpar fatos aqui e ali, dando especial ênfase aos contidos nos anúncios oficiais, aqueles realizados por representantes da empresa em eventos públicos. E um deles, feito em janeiro deste ano durante a feira anual CES realizada em Las Vegas pelo próprio Steven Sinofsky, Presidente da Divisão Windows da MS, chamou menos atenção do que deveria (talvez, quem sabe, por ter sido divulgado em plena efervescência da CES). E vale a pena reexaminá-lo.
Em sua palestra na CES (veja foto, obtida no sítio da MS) Sinofsky declarou publicamente em alto e bom som que, além dos processadores baseados na tradicional arquitetura x86, Windows 8 rodará em sistemas equipados com processadores ARM. Mais especificamente naqueles fornecidos pela NVIDIA, Qualcomm e Texas Instrument – como pode ser confirmado em um anúncio para a imprensa ainda disponível no próprio sítio da MS intitulado < http://www.microsoft.com/presspass/press/2011/jan11/01-05socsupport.mspx > “Microsoft Announces Support of System on a Chip Architectures From Intel, AMD, and ARM for Next Version of Windows”.
Mas que importância tem isto? Por que a MS decidiu abranger também esta linha de processadores? E, sobretudo, o que é um processador ARM?
Os processadores ARM
ARM é um acrônimo. Hoje em dia provavelmente pouca gente ainda lembra de que, mas para refrescar sua memória aqui vai: “Acorn RISC Machine”.
Mais tarde, com a extinção da empresa da qual herdou o nome, “ARM” passou a significar “Advanced RISC Machine”, mas provavelmente a maioria de seus usuários nem disso sabe. Hoje em dia usam “ARM” para designar uma arquitetura usada em processadores de 32 bits do tipo RISC (“Reduced Instruction Set Computer”) cuja patente pertence a uma empresa denominada ARM Holdings, que a licencia para quem desejar fabricar processadores ARM.
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Figura 2: O StrongArm da DEC |
O primeiro processador baseado nesta arquitetura – ou naquilo que se pode considerar como a versão mais primitiva desta arquitetura – foi o Acorn Archimedes, fabricado em 1987 pela Acorn Computers.
Alguém aí ainda lembra da Acorn? Se você não é inglês (ou não viveu nas ilhas Britânicas durante os anos oitenta ou noventa do século passado) é quase certo que não lembre. Sua história (interessante, por sinal; a empresa chegou a dominar o mercado de computadores do segmento educacional na Grã Bretanha com seu BBC Micro) pode ser encontrada no artigo < http://en.wikipedia.org/wiki/Acorn_Computers > “Acorn Computers” da Wikipedia.
Dela o que nos interessa é que na segunda metade da década de oitenta, quando as interfaces gráficas já anunciavam que iriam dominar o mercado, seus engenheiros decidiram que para o tipo de processamento necessário (lembre que naqueles tempos era a própria UCP que efetuava o processamento gráfico) precisariam de algo mais potente que o processador National 6502 que suas máquinas então usavam. O que exigiria uma nova arquitetura, naturalmente.
O conceito “RISC”, ou seja, de um processador com um pequeno conjunto de instruções que se limitava às operações mais simples, preferentemente executadas em um único ou poucos ciclos de máquina, já existia há décadas. Na verdade, existia mesmo antes da invenção de seu acrônimo (“RISC”, de Reduced Instruction Set Computer, cunhado na primeira metade da década de 1970, enquanto o primeiro computador que se pode considerar aderente à arquitetura RISC foi o CDC 6600 da Control Data Corporation, de 1964). E, para quem “entendia do riscado”, não era excessivamente complexo. Tanto assim que uma de suas primeiras implementações bem sucedidas foi levada a termo por um grupo de estudantes universitários envolvidos no projeto < http://en.wikipedia.org/wiki/Berkeley_RISC > “Berkeley RISC”, liderado por David Patterson na Universidade de Califórnia. E foi com base nele que nasceu o Acorn Archimedes.
O objetivo supremo da arquitetura ARM é a simplicidade. Mesmo agora, que entrou na era dos núcleos múltiplos (os mais modernos processadores ARM são “dual core”, ou seja, dispõem de dois núcleos independentes), ela mantem-se aferrada ao objetivo original. Não vou descer a detalhes técnicos, que não cabem neste texto, mas apenas assinalar que, desde o vetusto Acorn Archimedes, os processadores ARM continuam mantendo seus registradores internos e barramento de dados com 32 bits, instruções de tamanho fixo (e, naturalmente, como diz o nome, número reduzido) e um notavelmente parcimonioso consumo de energia. O que não impede que, ao longo dos anos, suas versões sucessivas venham incorporando o que a evolução da tecnologia de processadores trouxe de melhor, como execução em linha de montagem (“pipelining”), execução condicional, extensões SIMD avançadas (“Single Instruction, Multiple Data”, que o detentor da patente batizou de < http://www.arm.com/products/processors/technologies/neon.php > NEON), além de virtualização e extensões visando a segurança de dados (< http://www.arm.com/products/processors/technologies/trustzone.php > “TrustZone”). Mas, com tudo isto, continuam simples e baratos. O que os levou a um insuspeitado domínio do mercado.
Como? Pensou que o domínio do mercado de microprocessadores estava nas mãos das arquiteturas x86 e x64 dos chips Intel e AMD? Bem, se você acha que microprocessadores são usados apenas nos computadores, tudo bem. Mas se acredita que o mercado é dominado pela arquitetura que tem mais processadores a ela aderentes rodando por aí, neste caso é bom pensar duas vezes. Porque, segundo números fornecidos pela ARM Holdings, só em 2005 foram fabricados 1,6 bilhões de unidades ARM e o número vem aumentando a cada ano, o que a leva a estimar que existem hoje no mundo cerca de 15 bilhões de unidades ARM em funcionamento. Quer dizer: mais ou menos duas unidades e meia por habitante do planeta.
Isto sim é dominar um mercado...
Mas quinze bilhões é um bocado de coisa. Deveríamos estar tropeçando neles, mergulhando em um mar de ARMs. E, no entanto, tem gente que nem sabe que existem. Afinal, onde se escondem estes processadores?
Onde estão os ARMs?
Bem, para começar convém explicar que sua “dona”, a Arm Holdings, como o herdeiro que ficou milionário, há muito tempo não encosta o umbigo na bancada ou no balcão nem põe a mão na massa. Ela não fabrica processadores, apenas os licencia (e ganha cerca de quinze centavos de real por unidade vendida, uma merreca; mas convém lembrar que são quinze bilhões de merrecas, que somadas ao pagamento inicial da licença, de pouco mais de três e meio milhões de reais por licenciado, resulta em uma grana pretíssima).
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Figura 3: Logotipo da ARM Holdings |
E mais: a licença cobre apenas o uso da arquitetura para o núcleo do processador. O licenciado pode (e deve) agregar seu próprio projeto de partes opcionais. E, então, fabricar o processador que atenderá suas necessidades específicas. E estas necessidades podem variar bastante conforme o uso do processador.
E quem os licencia?
Bem, depende do produto. A ARM Holdings oferece seis grupos de processadores baseados em diferentes núcleos, três deles constituídos por processadores “Clássicos” (as famílias “Classic” ARM7, ARM9 e ARM11) e três formados pelos processadores “Cortex” (Cortex M, R e A). No total, são 521 licenciados apenas para os processadores “Classic” e 186 licenciados para os processadores “Cortex”, mais recentes e mais poderosos.
Cada licenciado fabrica seu próprio processador e tem o direito de “batizá-lo” com o nome que melhor lhe aprouver (afinal, a ARM Holdings fornece apenas o direito de uso da arquitetura do núcleo e o conjunto de instruções). Alguns você deve conhecer de nome. Já ouviu falar no Tegra da NVIDIA? Pois é um ARM e a NVIDIA é uma das licenciadas.
Mas você conhece muitas outras. Só como exemplo, aqui vão alguns nomes, além da NVIDIA, Qualcomm e Texas Instruments citadas pela própria MS em seu anúncio: Samsung, LG, Philips, Sharp, Broadcom, Fujitsu, Toshiba, Cirrus Logic, NEC e mais um bando de outras.
Até a própria Intel, por que não? Lembra do XScale, o processador de baixo consumo que ela fabricava antes de criar a linha Atom? Pois era um ARM licenciado pela ARM Holdings (que, por sinal, continua a ser fabricado pela DEC, agora uma subsidiária da Intel). E, se você quer examinar a lista completa dos mais de setecentos licenciados, consulte a página < http://www.arm.com/products/processors/licensees.php > “Processor Licensees” do sítio da empresa.
Nesta altura dos acontecimentos, talvez você já tenha se dado conta de onde encontrar alguns dos quinze bilhões de processadores ARMs que andam espalhados por aí. Se um deles não estiver em seu bolso, deverá estar ao alcance de sua mão ou não muito longe disso. Pois há um processador ARM em 80% de todos os telefones celulares produzidos no mundo. E em um imenso número de controladores industriais microprocessados. Em relógios. Em televisores, roteadores, dispositivos de armazenamento inteligente tipo NAS e na imensa maioria dos computadores que usam o novo e pequeno fator de forma denominado tablete (“tablet”).
Sim, os famosíssimos iPad, iPod e iPhone usam processadores ARM. Como ARM é o processador do badalado Transformer da ASUS (é um Tegra de núcleo duplo da NVIDIA) e de quase todo dispositivo GPS disponível no mercado. Dos consoles de jogos Nintendo. Enfim: de quase tudo que é processado, móvel, pequeno e que, por isto mesmo, necessita de poupar energia tanto quanto possível.
O que não quer dizer, naturalmente, que não sejam poderosos. É verdade que a maioria dos membros da família “Classic” de fato não o são. Afinal, nem toda aplicação necessita de muito poder de processamento. Mas convém não esquecer o ramo mais musculoso da família, a linha “Cortex”. Seus membros mais poderosos, garante a ARM Holdings, deixam no chinelo os mais robustos Atom da Intel. E, de lambuja, consomem menos energia...
Então, voltemos à vaca fria (não a conhece a expressão? Descubra sua origem no interessantíssimo sítio lusitano < http://ciberduvidas.sapo.pt/pergunta.php?id=21250 “Ciberdúvidas da língua portuguesa”)
A Microsoft e o ARM
Pois é, agora que já nos pusemos de acordo sobre o ARM, resta ver porque a MS está tão interessada em fazer sua nova versão de Windows rodar nele – se bem que nesta altura dos acontecimentos isto já tenha se tornado óbvio para quem tem um mínimo de conhecimento sobre como funciona o mercado de informática.
E se tem uma empresa que detém este conhecimento é justamente a MS (há quem diga que foi ela que criou este mercado em 1976, quando ainda se chamava Micro-Soft, com a famosa < http://www.blinkenlights.com/classiccmp/gateswhine.html > “An open letter to hobbyists” de Bill Gates, então na flor de seus vinte anos).
Nascida para desenvolver a linguagem de programação BASIC para os micros “de oito bits” da década de 1970, a MS logo descobriu que computadores pessoais poderiam prescindir de uma linguagem de programação (que na época em que foi fundada era essencial, já que não existiam programas à venda e quem quisesse usar um computador tinha que fazer seus próprios programas) mas jamais rodariam sem um sistema operacional. E tornou-se a gigante que é hoje graças à comercialização do MS-DOS, o sistema operacional dominante da linha PC. Depois, já na era das interfaces gráficas, garantiu um crescimento gigantesco sempre tendo como principal pilar de sustentação a venda de um sistema operacional, o Windows, que começou a desenvolver ainda nos anos oitenta. E assim foi durante anos.
Hoje, já não é mais.
Segundo < http://news.cnet.com/8301-10805_3-20081539-75/microsoft-results-top-expectations-led-by-office-xbox/?part=rss&subj=news&tag=2547-1_3-0-20&tag=nl.e703 > artigo recente da Cnet News, a MS continua a crescer (no último trimestre fiscal apurado, que se encerrou em 30 de junho passado, suas vendas atingiram US$ 17,37 bilhões, o que representa um crescimento de 8% sobre o mesmo período do ano passado, enquanto as vendas anuais cresceram 12% comparadas às do ano anterior).
Mas sua galinha dos ovos de ouro não é mais o Windows.
A grande geradora de receita para a MS no último trimestre foi a divisão Office, que gerou US$ 5,8 bilhões em vendas, 7% a mais que o ano anterior, enquanto o campeão de crescimento foi a divisão de entretenimento e dispositivos (“Entertainment and Devices Division”), ninho do Xbox, com seus 30% de aumento, embora com vendas de “apenas” US$ 1,5 bilhões (por enquanto).
Perto de ambas, a divisão Windows fez vergonha com seus US$ 4,7 bilhões de vendas no trimestre, que representam uma queda de 1% em relação ao mesmo trimestre de 2010.
Mas não se deixe enganar pela frieza dos números. Esta queda não quer dizer que Windows vem perdendo mercado no campo dos computadores pessoais, já que continua aboletado em nove de cada dez computadores pessoais que operam no planeta. Significa apenas que as vendas de computadores que usam Windows caíram.
E é justamente aí que aperta o calo da MS. Pois se os computadores pessoais – e vamos botar no mesmo bolo os de mesa e os portáteis, como os “notebooks” e os “netbooks” – estão vendendo menos é porque pululam no mercado alguns telefones celulares que fazem tudo – ou mais – que os computadores pessoais. Uma maquininha tão perfeita que se poderia dizer que “só falta falar” se, de fato, não falasse. E são tantos que hoje andam nas mãos até de crianças. Isto sem falar nos tabletes.
E quase todos eles usam processadores ARM.
Dos telefones celulares, não há muito a dizer. Quanto aos tabletes, há quem pense que não passam de modismo e logo desaparecerão. Estão enganados.
Mas não é só isto. Pois acontece que além dos tabletes, começam a aparecer modelos de micros portáteis convencionais, tanto “notebooks” quanto “netbooks”, equipados com processadores ARM para tirarem proveito do menor consumo de energia, um fator preponderante na escolha de um dispositivo portátil devido à maior duração da carga da bateria que proporcionam. Segundo < http://news.cnet.com/8301-13924_3-20080472-64/windows-8-to-spawn-new-breed-of-low-cost-laptops/?part=rss&subj=news&tag=2547-1_3-0-20&tag=nl.e703 > artigo da CNet News, estes computadores móveis equipados com processadores ARM, que hoje não abarcam mais de 3% do mercado, devem decuplicar sua participação em quatro anos, quando espera-se que já detenham 30% do mercado com 74 milhões de unidades vendidas apenas em 2015.
E, por enquanto, nenhum deles usa Windows, que não roda em ARM. O que explica o enorme crescimento do sistema operacional Android, que se aninha maravilhosamente em uma máquina ARM, seja ela um telefone esperto, seja um micro portátil convencional.
Há que contar, naturalmente, também com os tabletes. Que atualmente ou rodam Android, como o Transformer da ASUS, os Iconia Tab da Acer e os Galaxy Tab da Samsung (e mais dezenas de outros de marcas menos conhecidas), ou sistemas operacionais proprietários, como o TouchPad da HP e os computadores e tabletes da Apple.
E vocês acham que a MS, que, afinal, inventou o mercado de software, vai deixar passar uma oportunidade como esta?
Então prepare-se para ver, talvez já no próximo ano, o Windows 8 rodando em um dispositivo ARM perto de você.
Quem sabe, até, em suas próprias mãos...
É esperar para ver...