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B. Piropo

< Coluna em Fórum PCs >
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18/07/2011

< O Google e a memória >


Comecei a me envolver com computadores em meados da década de oitenta do século passado. E, embora pareça que empreguei o verbo em uma acepção equivocada, “envolver” é o termo que melhor exprime minha relação com estas máquinas pois com elas enrolei-me de tal maneira que, engenheiro ambiental que sou (sim, ainda sou; é esta minha profissão e é dela que tiro meu sustento) acabei tornando-me também colunista de tecnologia e professor de Arquitetura de Computadores. E tudo isto por puro prazer, pois acumular conhecimento sobre assunto que desperta nosso interesse e compartilhá-lo com os demais são dois dos grandes prazeres da vida.
O problema é que para compartilhar conhecimento não basta tê-lo. É preciso também retê-lo. E para retê-lo há que confiar na memória.
Ocorre que nos últimos tempos comecei a perceber que minha memória estava mudando. E mudando de um jeito diferente. Eu tendia a esquecer de certos fatos, alguns relevantes, enquanto conseguia lembrar de outros, nem sempre tão importantes, como costuma ocorrer com o passar do tempo. Mas o que me intrigava é que, embora não recordasse alguns dados, quase sempre me lembrava de onde os havia obtido, o que me facilitava recuperá-los.
Quando me dei conta deste fenômeno culpei o peso das décadas que se acumularam sobre este cérebro cansado. Embora a sabedoria popular afirme que quanto mais se envelhece mais sábios nos tornamos por conta do conhecimento acumulado, a verdade é muito outra. E quem melhor a exprimiu até agora foi João Ubaldo Ribeiro quando diz em sua voz pausada de barítono: “A única coisa que aprendi quando envelheci é que a velhice é uma meleca” (minhas desculpas ao João, que seria incapaz de dizer “meleca” neste contexto, mas se eu escrevesse aqui o termo por ele empregado – corretíssimo e absolutamente apropriado, como sempre – ele seria impiedosamente cortado por um programa que roda em segundo plano e impede que se publique neste Fórum aquilo que considera tabuísmo).

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Figura 1: Como funciona a memória?

Em suma: achei que a culpa de meus esquecimentos era da idade.
Pois não é que acabo de descobrir que estava equivocado?
A culpa, imaginem vocês, é do Google!
Acha que eu exagero e isto não passa de desculpa de velho para disfarçar a senilidade incipiente?
Pois saibam que não sou eu quem o afirma. É a respeitabilíssima – e simpaticíssima – Doutora Betsy Sparrow, psicóloga, professora assistente e pesquisadora da Universidade de Columbia, Nova Iorque, que publicou semana passada na revista Science o estudo intitulado “Google Effects on Memory: Cognitive Consequences of Having Information at Our Fingertips” (Efeitos do Google na memória: consequências cognitivas de dispor de informações nas pontas de nossos dedos) em parceria com seus colegas Jenny Liu, da Universidade de Wisconsin-Madison e Daniel Wegner de Harvard. Gente séria, portanto.
Pois de acordo com o estudo, os usuários de dispositivos de busca, como o Google, reorganizaram a forma de lembrar-se das coisas e passaram a confiar na Internet para recuperar informações esquecidas da mesma forma que confiamos em amigos, familiares e colegas de trabalho para este mesmo fim.
As conclusões da Dra. Sparrow vieram de uma série de experimentos realizados em etapas sucessivas com o mesmo grupo de participantes.
Na primeira etapa os participantes foram submetidos a uma bateria de perguntas no campo do conhecimento geral, com diferentes graus de dificuldade. O teste indicou que algumas respostas foram fornecidas imediatamente, enquanto outras exigiram que os participantes recorressem a mecanismos de busca na Internet como Google ou Yahoo para encontrá-las. E anotaram, para cada participante, quais respostas eles sabiam que estavam disponíveis na rede e quais não sabiam se estavam ou não.
Na etapa seguinte os participantes foram interrogados para verificar o grau de memorização das informações fornecidas em suas próprias respostas. Os resultados mostraram que eles retiveram mais facilmente as respostas que não foram obtidas na Internet, esquecendo com maior facilidade aquelas que sabiam poder recuperar recorrendo novamente à rede.
Posteriormente os mesmos participantes foram interrogados para verificar não apenas se ainda lembravam tanto das informações por eles fornecidas quanto da forma como foram obtidas. E os resultados confirmaram que, quando sabiam que a informação estava disponível na Internet, o grau de memorização era significativamente menor.
Finalmente, após cada pergunta, os participantes eram informados que sua resposta seria armazenada em uma dentre cinco pastas de nome genérico, onde permaneceriam disponíveis. E quando foram interrogados sobre as informações contidas na resposta e sobre a pasta em que estava armazenada, a porcentagem de acertos do nome da pasta foi muito maior que a de acertos sobre o conteúdo da resposta.
Uma investigação mais aprofundada revelou que as pessoas que se recordavam de uma dada informação tendiam a esquecer de onde ela fora obtida, enquanto as que se recordavam do local onde poderiam recuperar a informação tendiam a esquecer seu teor.
Estes resultados revelam um aspecto interessante do mecanismo de memorização de informações. Em um vídeo encontrado no artigo < http://news.columbia.edu/research/2490 > “Study Finds That Memory Works Differently in the Age of Google” publicado no sítio da Universidade de Columbia, afirma a Dra. Sparrows (em tradução livre feita por este vosso criado): “Memória não é apenas lembrar, recordar detalhes específicos. Memória é (a capacidade de) entender associações entre coisas. É assim que as lembranças são formadas, como uma rede de associações ... Da mesma forma que as pessoas se familiarizaram com a ideia de que outras pessoas podem funcionar como fontes adicionais de lembranças, elas consideram a Internet uma destas fontes, porém mais transparente ... As pessoas que acham que não terão mais acesso a uma informação tendem a guardá-la melhor na memória, o que sugere que quando acham que terão novamente acesso ‘online’ consideram que a informação está memorizada ... Também determinamos que as pessoas tendem a achar mais importante lembrar onde a informação pode ser encontrada do que da própria informação, o que é um comportamento adaptativo: quando se espera encontrar uma informação ‘online’ é melhor saber onde encontra-la do que lembrar da informação em si mesma ...”
Ou seja: aqueles que se habituaram a recorrer a dispositivos de busca da Internet para encontrar informações acabam, inconscientemente, considerando que todo o imenso acervo de dados que é posto à sua disposição por estes mecanismos foi incorporado à sua memória. E que é mais importante saber onde encontrar informações sobre um determinado assunto que memorizar tais informações.
Quer dizer: passamos a achar que, enquanto tivermos acesso ao Google e similares, o estoque de conhecimento de nossa memória tornou-se virtualmente infinito. E podemos nos dar ao luxo de efetivamente reter apenas o essencial (que inclui o local onde encontrar a informação desejada).
E isto é bom ou ruim?
Vejamos, novamente, o que diz a Dra. Sparrow, no vídeo acima citado: “Eu espero que outros pesquisadores retomem esta linha de pesquisa enfatizando os benefícios que a tecnologia representa em vez de achar, como a maioria, que ela está nos impactando de uma forma negativa, que as pessoas permanecem ‘online’ e não fazem amigos, o que é falso ...”
Portanto, ela acha bom. E pensa que um maior conhecimento sobre como nossa memória funciona em um mundo permeado por dispositivos de busca pode mudar a forma pela qual se ensina e se aprende em todos os campos. Diz ela: “Perhaps those who teach in any context, be they college professors, doctors or business leaders, will become increasingly focused on imparting greater understanding of ideas and ways of thinking, and less focused on memorization. And perhaps those who learn will become less occupied with facts and more engaged in larger questions of understanding” (Talvez aqueles que ensinam em qualquer contexto, sejam eles professores universitários, médicos ou líderes empresariais, voltem seu foco cada vez mais para transmitir melhor a compreensão de ideias e formas de pensamento e menos para a memorização. E talvez aqueles que estudam passem a dar menor atenção a fatos e maior à compreensão dos problemas)
Pois é isso.
Se a Dra. Sparrows tem razão ou não, não posso garantir. Mas que faz todo o sentido, lá isso faz. E agora, quando alguém me perguntar algo importante e eu não me lembrar da resposta, não preciso mais ficar aflito como costumava ficar.
Afinal, sempre posso jogar a culpa no Google...


B. Piropo