Sim, eu sei, o título é um bocado estranho. O que diabo teria o provimento de sinais da Internet usando a rede pública (ou privada, já veremos) de distribuição de energia elétrica com a prospecção de petróleo?
Para ser honesto, nada a ver. Os temas apenas estão juntos porque, ambos, são manifestações do desenvolvimento tecnológico. Manifestações tão diferentes, de amplitudes tão desiguais, com objetivos tão distintos, que só esta diversidade seria suficiente para justificar o fato de serem tratadas juntas. Mas, de novo, sendo sincero: elas estão no mesmo tópico por mera casualidade. É que nestas últimas semanas compareci a dois eventos que achei interessante mencionar aqui. Um deles discutiu as pesquisas que estão sendo realizadas no Brasil sobre transmissão de sinais da Internet utilizando a rede elétrica e o outro demonstrou um software quase milagroso, o “Decision Space Desktop”, desenvolvido pela Landmark, recentemente adquirida pela gigante Halliburton.
O primeiro foi o seminário internacional ITA PLC 2010, realizado pelo ITA-BH em Belo Horizonte no último dia 11, uma série de quatro painéis sobre a tecnologia PLC (Power Line Communication) com palestrantes do Brasil e da China (os dois países em que, ao que parece, os estágios das pesquisas sobre o tema estão mais desenvolvidos) que me deixou agradavelmente surpreso com o estágio de desenvolvimento desta tecnologia entre nós. O Seminário ocorreu no auditório da CDL e foi bastante concorrido. Este vosso amigo foi convidado a participar na qualidade de moderador de um dos painéis, justamente o que tratava do estabelecimento de Rede Corporativa Convergente sob IP utilizando a Tecnologia PLC. Como a função do moderador se resume a controlar o tempo das palestras, encaminhar perguntas e, vez ou outra, fazer um comentário supostamente inteligente, atarraxei uma expressão de profundo conhecedor do assunto na minha cara de pau e segui bravamente adiante. Segundo piedosos comentários de alguns participantes parece que consegui ocultar a imensidão de minha ignorância sobre o assunto e, dizem, sai-me razoavelmente bem. Pura sorte.
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Figura 1: Tela do DSD da Landmark |
O segundo evento foi chique, cheio da pompa e circunstância que a ocasião pedia: um coquetel nos salões do Hotel Copacabana Palace, aqui mesmo no Rio de Janeiro, promovido pela Landmark para divulgar seu formidável software DSD, uma das telas do qual é exibida na Figura 1.
A Landmark não é uma novata no campo do desenvolvimento de software para petróleo e gás. Muito pelo contrário: já tem vinte e cinco anos de experiência no setor, o que não somente faz dela a pioneira neste campo como também a primeira a levar para a indústria o conceito de “SDK” (“Software Development Kit”, ou conjunto de programas para desenvolvimento de software) na área de prospecção de petróleo.
Então falemos um pouco sobre cada um dos eventos.
O Landmark DSD
Eu e você estamos acostumados a lidar com programas de computador que fazem coisas. Explicando: um programa navegador salta de página em página dos diversos sítios da Internet que visitamos, mostrando seu conteúdo; um editor de textos, além de escrever o que digitamos no teclado, ainda se dá ao trabalho de formatar o texto e indicar os erros de ortografia e gramática; programas de edição de imagens criam desenhos; enfim: programas devem ter um objetivo determinado (pois, como bem sabem meus alunos, o fato de ter um objetivo determinado, ou seja, “fazer uma coisa”, é condição essencial para que possamos alçar um conjunto de rotinas de programação à categoria de “programa”; se não “faz alguma coisa”, então não é programa).
É claro que, por mais que as funcionalidades e recursos oferecidos pelos programas modernos que usamos em nossos computadores nos impressionem pelas “coisas” que são capazes de fazer, sabemos todos que existem programas bem mais poderosos e com infinitos recursos a mais. Devem ser assim, por exemplo, os programas usados pela NASA para planejar, coordenar e controlar as missões espaciais. Ou os programas capazes de controlar as aeronaves não tripuladas que sobrevoam territórios hostis e enviam fotos detalhadas a milhares de quilômetros de distância. Ou ainda os softwares que controlam os satélites artificiais; e outros tantos de igual porte.
Programas deste porte têm algo em comum com filhote de pombo, cabeça de bacalhau e filho de prostituta chamado “Junior”: sabemos que existem, mas ninguém jamais viu um deles de corpo presente.
Pois eu vi um. O DSD é um desses.
Se o objetivo da Landmark era impressionar a plateia, pelo menos no que diz respeito a mim foi coroado de sucesso. Vou tentar passar um pouco destas impressões para vocês, mas antes convém advertir que meus conhecimentos sobre prospecção avançada de petróleo são basicamente aqueles adquiridos através da leitura do “Poço do Visconde”, de Monteiro Lobato. Como esta leitura, apesar de atenta e profundamente interessada, foi feita há cerca de sessenta anos, tendo sido muito pouco atualizada desde então, não sou propriamente um especialista no assunto. Sei o que são anticlinais e sinclinais, aprendi mais alguma coisa na disciplina de Geologia cursada há quase meio século quando fiz Engenharia e temos conversado. Mas de softwares ainda entendo um pouco, de modo que dá para ter uma ideia de como a coisa funciona.
Para começar, o que é o DSD? Bem, segundo a própria Landmark, trata-se de um “espaço de trabalho unificado” para diferentes equipes com especialidades distintas, a ser usado na prospecção de petróleo. Pois, segundo eu entendi, o sucesso desta tarefa depende da estreita interação entre os grupos de especialistas em geofísica, geologia, modelagem do terreno e estímulo. No DSD há um módulo para cada uma destas especialidades que são integrados em um único “espaço de trabalho”, o próprio “DecisionSpace”, ou seja, o DSD.
A Figura 1 mostra o módulo de Geologia (e antes de prosseguir, um comentário: não estranhem o tamanho excessivamente pequeno dos ícones e entradas de menu que aparecem no alto da figura; é que para ser útil o DSD precisa ser exibido em altíssima definição e por isso usa uma tela de definição quatro vezes superior à de televisão HD, com a bagatela de 3840 colunas por 2160 linhas; com uma definição destas mostrada em uma tela LCD de 56”, asseguro que os ícones não parecem tão pequenos).
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Figura 2: Módulo de Geologia |
Neste módulo os especialistas podem gerar mapas rápidos da estrutura do terreno e da litologia (distribuição das rochas no subsolo considerando sua granulometria e características físico-químicas). As linhas inclinadas que aparecem na figura central são poços e os gráficos na extremidade direita são seus perfis geológicos. Com eles dá para montar não somente os cortes e plantas que se veem à esquerda como também impressionantes vistas tridimensionais sobre as quais falaremos adiante.
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Figura 3 : Módulo Geofísico |
Já a geofísica é um ramo de conhecimento das ciências da terra que estuda as propriedades físicas do terreno e sua estrutura sem se preocupar muito com sua natureza. Se você reparar na Figura 2 verá que nela o subsolo está dividido em camadas com diferentes características físicas. Dá para perceber a formação dos diversos “horizontes”, superfícies com características físicas semelhantes que se formam no subsolo em consequência da atividade sísmica. Dá para perceber, na figura de cima, à esquerda, a “fatia” do solo da qual um corte vertical é mostrado na figura inferior. As características são obtidas a partir de interpretação de dados sísmicos (provoca-se uma explosão e acompanha-se a propagação das ondas de choque no terreno). Tudo isto é feito pelo programa.
Juntando estes aos dados do módulo de estímulo, que permite a visualização do tratamento e diagnóstico de fraturas do terreno, chega-se ao módulo de modelagem da terra, mostrado na Figura 3.
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Figura 4: Modelagem da terra |
Se os gráficos tridimensionais da figura representassem a superfície do fundo do mar (sim, porque o DSD tem sido utilizado principalmente para prospecção de petróleo em águas profundas) já seria impressionante. Mas não representam. O que representam são modelos tridimensionais dos “horizontes” mencionados dois parágrafos acima. Se levarmos em conta que este modelo em particular representa o subsolo do fundo do mar em regiões onde a profundidade média é de alguns milhares de metros e que as camadas podem estar a outros tantos milhares de metros abaixo do fundo, não conheço quem fique indiferente.
Quer dizer: até aqui o software parece um prodígio tecnológico. E olhe que apenas vimos capturas de telas, figuras estáticas (veja < http://www.youtube.com/watch?v=t4YsIfviWBY > aqui um vídeo de demonstração).
Mas o DSD é dinâmico. Ele integra os quatro módulos acima descritos e os coordena, consolidando as informações e as apresentando da forma que o usuário achar mais conveniente, inclusive representações tridimensionais dos diversos “horizontes” do subsolo. Basta clicar e arrastar o mause que se vê tudo isto se mover na direção e sob a perspectiva desejadas. E a resposta do programa é impressionante, como se pode perceber no vídeo, um trecho do material de divulgação distribuído no evento.
Com este treco nas mãos é fácil descobrir onde o petróleo se esconde nas entranhas da terra. Só resta ir até lá e retirá-lo. Mas isso não é com a Landmark, é com gigantes do porte de uma Petrobrás (que tem o DSD instalado e em plena operação) ajudados por empresas como a Halliburton – que, não sem razão, incorporou a Landmark.
E como foi o coquetel? Não sei. Como cheguei antes da hora, o salão estava vazio e a equipe havia acabado de instalar o módulo de demonstração. A seu lado estava um cavalheiro simpático testando a coisa toda. Perguntei do que se tratava e ganhei uma soberba aula sobre o DSD, com uma demonstração particular e interativa. Cada pergunta minha era respondida com extrema boa vontade pelo cavalheiro, que estava genuinamente interessado em me mostrar as virtudes do programa e parecia saber tudo sobre ele.
Pois não é que sabia mesmo? O cara, como descobri depois, era Nick Purday, Diretor de Tecnologia de Geociências da Landmark, mestre em Geologia do Petróleo pela Royal School of Mines do Imperial College de Londres e craque em técnicas de interpretação.
Apresentação melhor que aquela eu sei que não assistiria mais tarde. Coquetel, pra que? Sai de mansinho e fui à luta.
A tecnologia PLC
O ITA é uma organização civil, sem fins lucrativos estabelecida em Belo Horizonte destinada a apoiar e promover atividades científicas e culturais. Dentre as primeiras, tem dado especial atenção ao desenvolvimento de estudos, pesquisas e projetos no campos das telecomunicações e no gerenciamento de energia.
O seminário ITA PLC 2010 representou a fusão destes esforços.
PLC é a sigla em inglês de “Power Line Communications” (comunicações via rede elétrica). Mas que diabos vem a ser isso? Se você é chegado a termos técnicos empolados, eu poderia responder que PLC é um sistema de transferência de informações e dados baseado em OFDM que usa como meio de transporte o cabeamento da rede elétrica pública e privada. E acrescentaria que OFDM é o acrônimo, em inglês, de “Orthogonal Frequency Division Multiplexing”, ou multiplexação ortogonal por divisão de frequência, uma técnica que permite transmitir diferentes sinais (como, por exemplo, diferentes programas de TV ou o conteúdo de diferentes sítios da Internet ou ainda diversas conversações telefônicas) simultaneamente, cada um deles usando sua própria frequência (ou “canal”) sobre uma mesma onda portadora. E poderia ainda dizer que se você estiver interessado em saber mais detalhes sobre a tecnologia OFDM, poderá consultar o trabalho de Pugel e Litwin, < http://voronuk.boom.ru/documents/ofdm.pdf > “The Principles of OFDM”, escondido em um sítio russo sobre processamento de sinais digitais, o < http://voronuk.boom.ru/index.html > AV-Soft (mas não se preocupe que há uma versão do sítio toda em inglês).
Mas esta é a explicação para quem gosta de termos técnicos empolados. Para quem não gosta, PLC é apenas uma técnica de transportar sinais (seja lá do que forem, incluindo telefone, rádio, televisão e, naturalmente, Internet) usando a rede elétrica pública ou privada. Esta mesma que você tem em casa para acender lâmpadas, ligar a TV e o micro-ondas.
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Figura 5: Rede PLC |
Não entendeu? É que o conceito é ao mesmo tempo tão simples e tão revolucionário que fica difícil acreditar que seja de fato possível. Explicando melhor, recorrendo à Figura 5 e usando como exemplo o que mais nos interessa, a Internet: se a rede elétrica de sua casa, ou de seu prédio de apartamentos, estiverem adaptadas para o uso da tecnologia PLC, basta ligar seu modem (que, tecnicamente, não seria um modem, mas um “acoplador PLC”) na tomada de eletricidade que ele receberá, pelos mesmos condutores, tanto a alimentação elétrica quando o sinal da Internet e transferirá ambos ao computador.
É claro que determinadas condições devem ser cumpridas. Primeiro, um provedor de Internet deve aplicar o sinal à rede através de um injetor, também conhecido por “conversor”, ou “Bridge”, que não aparece na figura 5 porque a injeção do sinal geralmente é feita em uma subestação distribuidora. Daí o sinal trafega pela rede pública usando os mesmos condutores que transportam a eletricidade (e apelando para um alvitre interessante para “atravessar” os transformadores sem atenuação ou distorção), passa quando necessário por dispositivos denominados “repetidores” que recuperam as perdas ao longo do trajeto e chegam a um “extrator”, que o envia às residências juntamente com a alimentação de energia.
No interior das casas o sinal continua percorrendo a rede elétrica. Para recebê-lo em seu computador basta tomar o cuidado de não ligar o micro diretamente à tomada, mas fazê-lo através de um acoplador PLC, que acaba sendo chamado de modem porque transporta o sinal da Internet. Este dispositivo, além de fornecer o sinal, alimenta os circuitos elétricos do computador.
Quer dizer: adeus aos cabos, linhas telefônicas e sistemas de transmissão de sinais sem fio de alcance limitado: seu sinal de Internet (ou de telefone, ou TV de alta definição, enfim, seja do que for) fluirá pela própria rede que transporta eletricidade. A rede existente, a mesma que está em sua casa, nas ruas, nas grandes linhas de transmissão que cortam o país e nas pequenas redes de eletrificação rural. Não será preciso acrescentar um mísero metro de condutor elétrico.
Resultado: quem tem eletricidade em casa poderá desfrutar sua Internet via PLC.
Note que não é preciso instalar novas redes elétricas, apenas incorporar alguns dispositivos à existente, seja pública ou privada. E note, também, que não falamos de conexões do tipo “devagar-quase-parando”: a tecnologia que está sendo desenvolvida pelo ITA e por algumas empresas chinesas (representadas no evento) já alcança taxas de transmissão (ou “banda”, para os que gostam de más traduções ao pé da letra do inglês) de 224 Mb/s (megabits por segundo) e as pesquisas para chegar aos 400 Mb/s estão em pleno desenvolvimento.
Participei do evento como moderador de um dos painéis, mas na verdade fui até lá para aprender. E aprendi um bocado. Não só sobre PLC mas, sobretudo, com o estágio de desenvolvimento das pesquisas aqui no Brasil, para ser preciso logo ali em BH. A turma do ITA-BH está fazendo bonito.
B. Piropo
PS - A quem interessar possa: forçado pelas circunstâncias, aderi de vez ao Twitter. Quem quiser me "seguir", favor acrescentar @bpiropo. E seja o que Deus quiser...
B.
Piropo