Sítio do Piropo

B. Piropo

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29/03/2010

< Dia Mundial da Água II: Cuidado, senão acaba >


Fechamos hoje a pequena série de duas colunas sobre o Dia Mundial da Água 2010. Na primeira, “Dia Mundial da Água I: a Água e a Vida” vimos como a água é essencial à vida. Nesta tentaremos mostrar porque, apesar de sua aparente abundância fazer com que a maioria dos habitantes do planeta acreditem que é inesgotável, ela é na verdade um recurso que começa a escassear.

Figura 1: “Água limpa para um mundo saudável”

Então, vamos adiante.
Os primeiros agrupamentos sociais eram nômades. As tribos, ou grupos, vagavam pelos campos e florestas buscando alimento através da caça, pesca e coleta de frutos. A sobrevivência era difícil e a quase onipresença dos inimigos naturais aliada à inclemência das condições climáticas não a tornava mais fácil. Melhor seria se dispusessem de um abrigo.
Começaram se abrigando nas cavernas, um refúgio oferecido pela natureza. Mas nem sempre este abrigo era encontrado onde nossos antepassados gostariam que estivessem.
Foram, então, forçados a aprender a construir seus próprios valhacoutos (mais uma, Xandó, para sua apreciação). E assim puderam abandonar a condição de nômades e passaram a viver de um modo mais sensato: sediados no mesmo local, domesticando os animais e plantando os vegetais que lhes alimentariam em torno de seus abrigos. Mas para isso precisavam de um recurso essencial. Adivinhou? Isso, a água.
Não foi à toa que a chamada “civilização” nasceu muitos séculos antes de Roma em um local chamado Mesopotâmia. Que, segundo o Aurélio, quer dizer “região situada entre rios” (mesos, “entre”, “no meio de”, e potamos, “rio”). Mais especificamente os Rios Tigre e Eufrates, local onde hoje se situa o sofrido Iraque. E toda grande civilização da antiguidade está de alguma forma ligada a um rio: desde o Nilo, do velho Egito, até o Sena, dos Celtas, o Amarelo, dos Chineses, o Tamisa, dos Bretões e mais quantos exemplos se queira. Inclusive o Tibre, dos romanos.
O rio era imprescindível. Servia como fonte de água, o manancial, sem o qual a vida era impossível. Mas era mais que isso: era também o transportador dos refugos, o corpo receptor do lixo e dos esgotos  gerados pela comunidade, levando os rejeitos para longe dela.
O drama é que aquele corpo de água que eu, especialista em tratamento de esgotos, chamo de “corpo receptor”, é o mesmo que meu colega engenheiro, especialista em abastecimento de água, chama de “manancial”.
E a humanidade vem seguindo assim desde os primórdios, acostumando-se a sujar o prato em que come (ou melhor, o copo em que bebe). Há milênios as cidades ribeirinhas continuam lançando seus dejetos nos mesmos rios que as abastecem, ou seja, fazendo com que o manancial de suas águas seja o mesmo corpo receptor de seus esgotos.
No princípio essa prática não constituía problema: bastava abastecer-se de água “águas acima” (ou “à montante”, no jargão técnico) e lançar os despejos “águas abaixo” (ou “à jusante”). E este alvitre funcionou muito bem enquanto as cidades eram relativamente pequenas e a população escassa.
Mas em uma cidade de meio milhão de habitantes, como a Roma do início da Era Cristã, isso já era impossível. E o homem começou a emporcalhar a mesma água da qual se servia. E, finalmente, a tomar consciência disso.
Fio assim que nasceu o conceito de “qualidade da água”.
Hoje ele está estabelecido cientificamente. De acordo com a ONU, “qualidade da água é o conjunto das características químicas, físicas e biológicas necessárias para sustentar um uso determinado”. E os possíveis usos lá estão, catalogados: abastecimento urbano (a “água de beber”, camará...), uso recreacional, pesca, habitat para organismos aquáticos (estes todos os que requerem maior grau de pureza) além de usos menos nobres (menos exigentes no que toca à qualidade) como geração de energia hidroelétrica, navegação e diversos outros.
Mas na época dos romanos a coisa era mais tosca. Sabia-se apenas que havia água boa e água ruim, e quando se precisava de água boa, se a que era oferecida pelo corpo d´água mais próximo não o era, havia que buscá-la mais longe. Foi quando surgiram os aquedutos, um meio de captar, rio acima, água (ainda) de boa qualidade e transportá-la até onde ela era necessária.
Razão pela qual Roma, lá pelo século quarto da Era Cristã, era abastecida por uma rede de aquedutos cuja extensão total somava perto de quinhentos quilômetros. Um deles, recentemente fotografado do interior de um trem por este vosso criado, aparece na figura abaixo. Use sua imaginação para remover os trilhos, postes e trapizongas modernas que o cercam e repare nele, em sua envergadura, imponência e, sobretudo, na solidez de sua estrutura (afinal, ele está ali há quase dois mil anos). Imagine o quanto de tecnologia de construção civil foi exigida para sua feitura.

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Figura 2: Aqueduto romano

Foi mais ou menos nessa época que surgiram as primeiras tentativas de tratamento de água para melhorar sua qualidade. E o primeiro dispositivo de tratamento, ainda do tempo dos romanos, foram grandes tanques, denominados “piscinas”, onde a água era armazenada antes de sua distribuição. Estes tanques cumpriam dupla finalidade. Uma delas era o armazenamento propriamente dito. A outra era a decantação da água, através da sedimentação das impurezas no fundo do tanque. Que se chamavam “piscinas” não porque eram usados para banho, muito pelo contrário. Assim se chamavam porque neles se criavam peixes (“pisces”). Que não serviam de alimento e muito menos de ornamentação. Eles ali estavam porque, enquanto permanecessem vivos, a qualidade da água era adequada. Morrendo, indicavam deterioração desta qualidade. E aqueles pobres peixes, sem o saberem, foram os primeiros indicadores biológicos de qualidade de água.
A coisa continuou assim por milênio e meio. Pois o homem, que se acha inteligente, só descobriu quase dois mil anos depois de inventar as práticas rudimentares de tratamento de água que mais valia a pena tratar os despejos antes do lançamento ao corpo receptor que lançá-los em bruto e recolhê-los aguas abaixo, no agora manancial, sob a forma de água poluida – o que exigia um gasto muito maior no tratamento de água.
Pois foi apenas em meados do século dezenove, com a tentativa de emprego destas mesmas práticas para purificar os rejeitos antes de lançá-los ao corpo receptor, que nasceu o tratamento de esgotos.
Sintomaticamente ele nasceu na Europa Central. Seu pioneiro foi um alemão chamado Karl Imhoff. Que desenvolveu as primeiras unidades de tratamento para receber não os esgotos sanitários, aqueles produzidos pela população em suas residências, mas os despejos industriais, muito mais agressivos e perigosos. Porque foi naquele século, primeiro na Inglaterra, depois na Europa, que surgiu a revolução industrial. E foi ela que agravou o problema da escassez e da má qualidade da água. Primeiro, pela migração de imenso contingente humano das áreas rurais para as urbanas, onde se concentrava o operariado, fazendo com que as cidades crescessem cada vez mais. Depois, pela produção de novos rejeitos, esses ainda mais agressivos, os despejos industriais. Que, como os esgotos domésticos, eram lançados aos rios.
Pois bem: de lá para cá a coisa só vem se deteriorando. Quer ter uma idéia? Consulte os documentos< http://www.unwater.org/worldwaterday/downloads/WWD2010_LOWRES_BROCHURE_EN.pdf >  “Clean Water for a Healthy World” e < http://www.unwater.org/worldwaterday/downloads/WWD2010_FAQS_EN.pdf > “Frequently asked questions on water quality”. E prepare-se para se assustar.
Veja, por exemplo, esta tradução livre de um trecho de um dos documentos citados: “A deterioração da qualidade da água ocorre quando a infraestrutura sanitária e instalações de tratamento de esgotos sanitários ou despejos industriais estão sobrecarregadas, são ultrapassadas ou inexistentes e os rejeitos são lançados diretamente no meio ambiente, onde escoam até os corpos d´água superficiais ou infiltram-se no lençol subterrâneo. Ampliar e atualizar tais infraestruturas costuma ser caro e, em virtude disso, em geral não acompanha a rapidez do desenvolvimento. O gerenciamento dos recursos hídricos, portanto, emerge como um dos grandes desafios globais. Além disso, a produção industrial e agrícola tem resultado em novos problemas potenciais que se transformaram em uma das mais importantes ameaças aos recursos hídricos em muitas partes do mundo. A qualidade das águas pode ser afetada pela carga orgânica (por exemplo, dos esgotos sanitários), pelo lançamento de organismos patogênicos incluindo vírus oriundos do homem e de animais, pelos despejos sanitários e pela lavagem da chuva nos campos agrícolas com sua carga de nutrientes (por exemplo, nitratos e fosfatos) que favorecem a eutroficação e depleção dos teores de oxigênio nos corpos d´água, pela salinização oriunda da irrigação e desvios de cursos de rios, pela poluição por metais pesados, óleos sintéticos e produtos químicos persistentes (por exemplo, plásticos e pesticidas), por resíduos de medicamentos, complementos hormonais e seus subprodutos, por poluição radioativa e até mesmo pela poluição térmica oriunda de resfriamento industrial e operação de reservatórios. A degradação da qualidade da água pode resultar na deterioração do funcionamento de ecossistemas e pode conduzir a mudanças abruptas e não lineares. A partir do momento que determinados limiares são ultrapassados, o sistema pode evoluir para um estado muito diferente e entrar em colapso. Por exemplo: cargas excessivas de nutrientes em ecossistemas de água doce ou costeiros podem causar mudanças abruptas e extensas, possivelmente levando a eclosões de superpopulação de algas e depleção do teor de oxigênio que podem tornar o ambiente imprestável para a vida animal”.
Estes fenômenos vêm ocorrendo aceleradamente em todo o planeta. E têm afetado drasticamente a qualidade da água doce nas reservas naturais, em muitos casos tornando-as impróprias para consumo humano e mesmo para uso industrial (acha improvável? Pois então pense na possibilidade de captar e distribuir como água de abastecimento as águas do Rio Maracanã, que corta a Cidade do Rio de Janeiro, do Tietê ou Pinheiros, que cortam a Cidade de São Paulo, ou de qualquer rio que atravesse uma cidade de grande porte brasileira, e entenderá o que pretendo ilustrar). Porque, como mencionado na primeira coluna desta série, o problema não é de quantidade, é de qualidade. E uma coisa acaba se refletindo na outra, pois há ainda um importantíssimo componente econômico.
Mas como econômico? Afinal, água, na natureza, é de graça. Então, porque pagamos para recebê-la em nossa casa?
A resposta está contida na própria pergunta. A “conta de água e esgoto” não cobra pela água. E muito menos pelos esgotos – afinal, somos nós que os produzimos. Nós não pagamos a água, pagamos para recebê-la. Nem o esgoto, que pagamos para removê-lo. O órgão municipal (um dos muitos serviços autônomos de águas e esgotos – SAAE – espalhados pelo país), estadual (Companhias Estaduais de Água e Esgoto, como CEDAE, SABESP, CORSAN, EMBASA, SANEPAR, SANEMAT, CAERN, para citar apenas algumas) ou empresas privadas que distribuem água não cobram pelo líquido, mas pelo serviço que prestam ao captá-lo, bombeá-lo até a estação de tratamento, tratá-lo e distribui-lo pela comunidade. O mesmo ocorre com os esgotos: o que se paga é o serviço de transportá-lo para longe de nossas casas, tratá-lo e dispô-lo corretamente em um destino final adequado.
E esses serviços têm se tornado cada vez mais onerosos devido à deterioração da qualidade das águas na natureza.
Portanto, para que se possa distribuir água a um preço acessível, é preciso que o manancial a ofereça com um grau de qualidade que não exija um nível de tratamento demasiadamente elevado, o que viria a tornar o tratamento e distribuição economicamente inviável (há exceções; na Líbia, por exemplo, o governo gasta fortunas na dessalinização da água do mar, distribuída a preço vil para a população que a usa até mesmo para regar lavouras; mas a Líbia é um país rico graças a suas imensas reservas petrolíferas e, para o governo Líbio, custo não é problema).
Então, a má qualidade dos mananciais acaba se refletindo na quantidade de água disponível para uso. Pelo menos para uso em condições econômicas viáveis.
Na costa Leste dos EUA, onde se concentram metrópoles do porte de Nova Iorque, Filadélfia, Boston e Washington, a escassez de água de qualidade adequada para abastecimento urbano e industrial, mesmo depois de tratamento, já constitui grave preocupação. Na costa Oeste dos mesmos EUA, especificamente na região da Califórnia, o problema ainda é mais grave. Lá, definitivamente, não há recursos hídricos superficiais suficientes para o abastecimento de uma megalópole do porte de Los Angeles, por exemplo. Eles são obrigados a captar do lençol subterrâneo praticamente toda a água que usam. E o consumo é tão grande que tem ultrapassado a capacidade de recarga deste lençol. O resultado disso é que, como se trata de uma região costeira, a penetração da chamada “língua salina”, resultado da infiltração da água do mar no lençol subterrâneo no sentido da costa para o interior, tende a elevar o teor de sais dissolvidos na água até níveis próximos de torná-la imprestável para consumo humano (é por isso que a água do mar, mesmo ocupando a maior parte do planeta, não apresenta qualidade adequada para abastecimento).
E isso nos EUA, onde a escassez de água até recentemente não era um problema. Há paises, sobretudo no Oriente Médio e Norte da África (como a Líbia, citada acima), que têm a boa sorte de estarem deitados sobre um lençol de petróleo combinada com a má sorte de se espalharem sobre uma imensa extensão de deserto. Resultado: cidades relativamente grandes, do porte de Bengazi e Tripoli, esta última a capital com quase dois milhões de habitantes, são abastecidas com água obtida da dessalinização da água do mar, um processo extremamente caro e altamente voraz em termos de energia, que somente é possível devido à fortuna (em ambos os sentidos) destes países oriunda do petróleo.
Mas e os demais paises da África, onde há imensas regiões desérticas ou semi-desérticas e que não têm a mesma sorte de dispor de petróleo? Como sua população é abastecida?
Mal. Muito mal. O que a criança mostrada na figura abaixo (obtida no < http://www.worldwaterday2010.info/ > sítio do World Water Day 2010) está bebendo não é sopa. É água. A única à qual lhe é dado acesso.

Figura 3: Criança africana bebendo água.

E a coisa vem piorando cada vez mais.
Mas, apesar disso, ao que parece a humanidade ainda não se deu conta do perigo que corre (por isso mesmo eventos como o Dia Mundial da Água são necessários e colunas como esta podem ajudar a chamar a atenção para o problema).
Exemplos, há aos montes.
O mais gritante: nossos vasos sanitários.
Provavelmente você nunca pensou no assunto porque assuntos deste tipo não são lá muito agradáveis de pensar – e eu peço desculpas para chamar sua atenção para um tema tão escatológico. Mas desta vez é necessário. Veja lá: diariamente bilhões de pessoas vão ao banheiro, usam o vaso sanitário e dão descarga.
Usam o vaso sanitário para que? Ora, para nele depositarem os rejeitos de seus próprios organismos, algumas dezenas de gramas de fezes e um par de decilitros de urina.
As boas regras de higiene recomendam que tais rejeitos sejam transportados para longe de nossas casas o mais rapidamente possível, idealmente sem que se volte a ter qualquer contato com eles, e sejam encaminhados, após o devido tratamento, a um destino final adequado.
A palavra chave do parágrafo anterior é “transportados”.
Qual o veículo usado para tal transporte? Aposto que você nunca pensou nisso, mas o veículo é a própria água da descarga. E basta olhar para os sistemas que ainda adotam caixas de descarga para perceber que uma descarga em um vaso sanitário gasta cerca de vinte litros de água (os sistemas modernos, que usam válvula de descarga diretamente na tubulação, costumam drenar bem mais que isso).
Quer dizer: para transportar para longe de nós algumas dezenas de gramas ou um par de decilitros de nossos rejeitos, gastamos mais de vinte litros de água recebida pela rede pública de distribuição. E, como salvo raras exceções, a água de abastecimento no Brasil é de boa qualidade, são vinte litros de água potável, aderente aos mais rigorosos padrões estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde para consumo humano, que foi captada no manancial, recebeu um tratamento que custou um bom dinheiro e foi distribuída pela rede pública até nossas casas.
Aposto que você jamais pensou nisso. Mas, pergunto: faz sentido? (A propósito: há soluções; uma delas, objeto de pesquisas em diversas organizações sanitárias, é um vaso sanitário capaz de dar descarga com menos de dois litros de água; outra, já usada em instalações industriais, aeroportos e similares, é manter uma rede separada para alimentar as descargas dos vasos sanitários, rede esta abastecida com o próprio efluente da estação de tratamento dos esgotos).
Faria também sentido usar água potável para a lavagem de pisos? Nos “lava jato” de automóveis? Para resfriamento industrial? Para limpeza de calçadas? Quantas vezes eu mesmo já vi, em calçadas de edifícios onde dois baldes de água bem espalhados e um pano embebido em líquido para limpeza as deixariam imaculadas, um pobre porteiro, ignorando o desperdício pelo qual é responsável, usar centenas de litros de água que jorram em jato de uma mangueira para “empurrar” uma pequena folha de árvore ou ponta de cigarro através de toda a extensão da calçada até a sarjeta para que ela escoe pelo ralo. Água pura, tratada, potável...
Entendeu agora porque venho afirmando há anos que, neste século, a água desempenhará o papel que o petróleo desempenhou no século passado? Porque, certamente, a humanidade encontrará um meio de sobreviver quando o petróleo acabar. Combustíveis alternativos, derivados da biomassa, tomarão o lugar da gasolina e diesel. Outros compostos químicos orgânicos (o petróleo é um composto orgânico), provavelmente também derivados da biomassa, suprirão a demanda dos compostos petroquímicos (já há plásticos biodegradáveis para embalagens transparentes derivados do milho).
Em suma: de um jeito ou de outro a humanidade suplantará a escassez total do petróleo.
Mas como poderá ela sobreviver sem água?
Pois é isso...
Mas ainda devo a resposta à pergunta do início da coluna anterior: você beberia esgoto?
Aqui vai ela, juntamente com as prometidas duas notícias...
Primeiro, a ruim: detesto ser o portador de más notícias, mas a não ser que você viva em uma fazenda ou uma pequena cidade, mas muito pequena mesmo, situada próxima á nascente de um rio de águas cristalinas, lamento informar que em cada copo de água bebida por você uma parte, que pode ir de algumas gotas a uma fração bastante significativa, em algum momento antes de você bebê-la, já foi esgoto. E não adianta chiar. Porque aquela velha mania da humanidade de fazer com que os mananciais também sejam corpos receptores torna inevitável esta presença. Pois não há cidade – e, se houver, são as poucas exceções que confirmam a regra – cuja captação da estação de tratamento de água não se situe águas abaixo de outra cidade que lança seus esgotos, tratados ou não, naquele curso d´água. E não adianta tentar fugir do inevitável alegando que sua cidade não é abastecida por água captada em um corpo d´água superficial, mas sim do lençol subterrâneo. Afinal, como você pensa que o lençol subterrâneo é recarregado? Com a mesma água da superfície que nele se infiltra. E parte desta água é esgoto (sim, há exceções, mas também elas de nada servem senão para confirmar a regra).
Quer um exemplo? A própria Los Angeles citada há poucos parágrafos. Lá os esgotos são tratados em onze diferentes estações de tratamento de esgotos. Dez delas são classificadas como “Water Reclamation Facilities” (estações de recuperação de água). Todas produzem um efluente final (esgoto tratado) que vão de muito boa a excelente qualidade. As primeiras distribuem o efluente para indústrias, que o usarão para atividades industriais e resfriamento, economizando assim a água potável que seria usada para este fim. As de qualidade excelente simplesmente bombeiam o efluente para o interior do lençol subterrâneo nas vizinhanças da orla marítima, onde o infiltram. Oficialmente, este efluente é infiltrado para “conter a invasão da língua salina”. Mas, depois de infiltrado e diluido no lençol (principal fonte de abastecimento da cidade), quem sabe quanto daquele efluente ficou, efetivamente, contendo a água salgada e quanto retornou para o lençol e foi captado, tratado como água e distribuído à população?
Pois é isso. Não tem escapatória. E se você mora no Rio de Janeiro e está “se achando” porque a água da Estação de Tratamento do Guandu é captada no próprio Rio Guandu, um rio curtinho e que portanto deve receber pouco esgoto, pode tirar o cavalo da chuva. A maior parte da água do Guandu vem do Paraiba do Sul (é desviada de um rio para o outro pela Light para gerar eletricidade). E o Paraíba recebe os esgotos de cidades do porte de Aparecida, Volta Redonda, Barra Mansa e mais uma tantas dezenas de outras espalhadas pelo Vale do Paraíba. Isso sem falar nas cidades mineiras à beira do Paraibuna, afluente do Paraíba à montante do desvio...
Ah, sim, já ia me esquecendo, tem também a notícia boa.
A boa é que, mesmo sabendo que uma parte da água que você bebe corre o risco de, digamos, já ter sido bebida antes por outrem, a tecnologia moderna de tratamento de águas e esgotos garante que nenhum mal esta água lhe causará. Pois como eu disse, salvo raras exceções (e, modestamente, após mais de meio século labutando neste campo eu posso afirmar que entendo alguma coisa do assunto), a qualidade da água distribuída à população brasileira tanto pelos órgãos municipais quanto pelos estaduais e privados, varia de boa a excelente. E obedece aos mais estritos padrões de potabilidade nacionais e internacionais. Portanto, qualquer que seja o critério adotado, para todos os efeitos legais, ecológicos e sanitários, é água pura.
Então, parodiando a ex-ministra (que me desculpe o único leitor que não gosta que eu a cite), nos resta apenas relaxar e gozar.
Gozemos a vida, pois.
E poupemos água.

 

B. Piropo