Você beberia um copo de esgoto? Não creio que a resposta seja afirmativa. Mas digamos que fosse um copo de esgoto tratado. Neste caso, você o beberia? Também não? Mesmo que eu assegure que o tratamento a que o esgoto foi submetido adotou uma tecnologia que garante que o líquido daquele copo, embora esgoto tratado, adere aos mais rígidos padrões de potabilidade? Acho que ainda assim dificilmente você diria que sim. Afinal, esgoto é esgoto, não é verdade? Então vamos colocar a questão de uma forma diferente: você beberia um copo de água em que uma parte dele, em um passado próximo, foi esgoto sanitário? Também não?
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Figura 1: água |
Nesse caso, tenho duas notícias para você. Uma ruim e uma boa. Mas antes de dá-las, vale a pena tecer algumas considerações sobre o tema “água”. Um tema sobre o qual já escrevi seguramente algumas centenas de páginas, talvez milhares, mas que jamais imaginei que um dia haveria de fazê-lo aqui neste Fórum. Mas quando soube que o Paulo Couto, autoridade suprema do FPCs, propunha que nesta semana alguém abordasse o assunto, não pude me furtar a assumir a tarefa.
A que se deve a solicitação do Paulo? Bem, é que estamos em plena semana da água. Nela – mais especificamente na última segunda-feira, dia 22 de março – ocorre o “Dia Mundial da Água”. Uma data importante, particularmente para nós, brasileiros, já que foi formalmente instituída pela ONU durante a reunião da UNCED (United Nations Conference on Environment and Development) realizada no Rio de Janeiro em 1992. Lembra? O famoso Eco 92? Pois é...
Durante a semana da água as nações membro da ONU dão uma ênfase especial à implementação das recomendações da Organização que visam promover ações concretas com o objetivo de proteger e conservar os recursos hídricos. Isto inclui a promoção de eventos e campanhas de esclarecimento visando chamar a atenção não apenas das autoridades como da população em geral para a importância do tema. E não são poucos. Na verdade seu número chega a centenas, senão milhares, de eventos grandes e pequenos espalhados por todo o mundo (como o mostrado na figura abaixo, realizado na favela Pundit Purva, em Takrohi, estado de Uttar Pradesh, na India – foto obtida no sítio do Dia Mundial da Água 2010). Se você deseja dar uma olhada na lista completa ou, pelo menos, verificar se há algum evento programado em sua região, visite a página “Events Calendar” do mesmo sítio. E se quiser organizar algum evento, o caminho também é este. As inscrições para eventos a serem programados a partir de dez de abril de 2010 estão abertas.
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Figura 2: Evento do Dia Mundial da Água na India |
Mas, pensando bem, por que dia da água? O que teria levado a ONU a institui-lo? E, se ele foi instituído, porque não seguir a receita à risca e criar um dia do ar? Ou dia da terra? Ou, sei lá, para completar os quatro elementos da antiguidade, instituir um dia do fogo? O que tem a água de especial?
Tudo.
Como eu disse, há décadas venho escrevendo e falando sobre o tema em artigos, aulas e palestras. Isso porque desde os anos setenta do século passado sou professor da disciplina “Tratamento de Esgotos”, primeiro na UERJ, atualmente na PUC-RJ, onde a leciono para o curso de Engenharia com Ênfase para o Meio Ambiente há mais de uma década.
Estranhou? É, eu sei. Talvez a maioria de meus leitores aqui neste Fórum desconheça esta faceta do velho Piropo e imaginem que ele dedicou a vida a trabalhar no campo da informática. Não é verdade. Com informática mesmo, embora tenha chegado ao ponto de lecionar disciplinas correlatas, nunca trabalhei. Apaixonei-me pelo tema há um quarto de século e desde então venho a ele dedicando boa parte de minha atenção. Mas por puro prazer, jamais por obrigação. Por outro lado, não existe um professor de Tratamento de Esgotos chamado B. Piropo. O que existe é o engenheiro Benito P. Da-Rin, que há mais de cinquenta anos trabalha no campo da engenharia sanitária e há cerca de trinta leciona tratamento de esgotos.
É nisso que dá ter dupla personalidade...
Mas voltemos ao tema. Ou a algo parecido: comecemos falando do petróleo.
Lá pelos idos dos anos setenta estourou a primeira crise do petróleo. Com a forte atuação da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), criada no início da década anterior, o preço do barril, que na época flutuava em torno dos três dólares americanos, disparou. E continuou disparando em crises sucessivas até ultrapassar a casa dos 150 dólares. Atualmente anda abaixo dos cem dólares, mas diante de qualquer turbulência no mercado internacional (e estáí um mercado onde turbulência é mais a regra que a exceção) pode voltar a subir e chegar às nuvens.
A partir do início da segunda metade do século passado o petróleo tem desempenhado um papel essencial nas relações internacionais. Ele tem sido motivo de disputas, discordâncias, contenciosos e desentendimentos entre nações que não raro, declaradamente por causa dele ou não, terminam em guerras (eis aí a ocupação do Iraque para não me deixar mentir).
E há uma forte razão para isso. Pois o petróleo tornou-se essencial à vida moderna. Uma fração ponderável da energia elétrica gerada no planeta para consumo residencial ou industrial resulta da queima de seus derivados. Uma quase incomensurável frota de veículos, desde caminhões para transporte de mercadorias até carros de corrida, queimam gasolina ou óleo diesel, também derivados do petróleo. Mas isso é o de menos (não em termos de consumo, mas de importância para a sociedade). Porque tudo, ou quase tudo que nos cerca, de tecidos para vestuário até materiais plásticos, de tintas até embalagens, revestimentos para condutores elétricos, carrocerias de veículos automotores, componentes da indústria eletrônica, informática e telecomunicações, em suma, praticamente tudo que tem a ver com tecnologia é fabricado no todo ou em parte por um produto da indústria petroquímica. E o petróleo é a única matéria prima desta indústria.
Incidentalmente: não lhe parece no mínimo curioso que este mesmo petróleo, a única matéria prima que pode ser empregada para produzir quase todos os utensílios usados por nossa sociedade, um recurso não renovável que fatalmente, cedo ou tarde, se esgotará, em vez de ser avaramente preservado, seja refinado e tão frequentemente usado para movimentar um carro de luxo que pesa um par de toneladas, na maioria das vezes transporta uma única pessoa e que poderia ser movido por um combustível alternativo ou por energia elétrica? Não lhe parece que ao petróleo deveria ser reservada uma utilização mais nobre? Não seria insensato queimar, literalmente, um recurso tão precioso, escasso e finito, para uma atividade tão frívola? Pois toda vez que penso nisso é impossível não lembrar de Albert Einsten e sua frase lapidar: “só existem duas coisas infinitas, o universo e a estupidez humana; mas não estou absolutamente seguro quanto ao primeiro”.
Mas deixemos isso pra lá. Em vez disso, vejamos o que tem a ver o petróleo com a semana da água.
Na verdade, não muito (além do fato de ser um dos mais importantes agentes de poluição hídrica). Eu apenas frisei sua importância para citar um fato curioso. Pois ocorre que há mais de duas décadas, em minhas aulas, ao enfatizar a importância de preservar a qualidade da água no ambiente natural, eu costumava afirmar que, no século seguinte (ou seja, neste em que hoje vivemos) a água passaria a desempenhar nas relações internacionais o papel então reservado ao petróleo. Que as nações “ricas” seriam aquelas em que os recursos hídricos são abundantes (como o Brasil, que detém mais de um décimo das reservas de água doce do planeta) e não aquelas que detivessem as maiores reservas de petróleo. E que seria apenas uma questão de tempo para que isso se tornasse evidente.
A reação de quem ouvia variava da simples incredulidade até resmungos do tipo “este cara está maluco” (talvez até com razão, mas não por isso). Ninguém acreditava. Achavam um exagero de minha parte.
Pois não é que ultimamente tenho ouvido a mesma afirmação partindo das mais diversas fontes e proferida por pessoas inquestionavelmente sensatas e respeitabilíssimas? Um bom exemplo é mestre Luís Sucupira, que publicou aqui mesmo no FPCs a coluna “O Ouro Azul e o consumo virtual de água” abordando o tema de forma mui apropriada.
Entendam: não estou tentando disputar a primazia com mestre Sucupira ou com ninguém. Sendo eu um profissional do ramo e tendo, por dever de ofício, que conhecer os limites da disponibilidade de água no planeta, nada mais natural que eu me desse conta um pouco mais cedo que os demais da gravidade do problema. Isso é perfeitamente natural. O que me inquietava, então, era o fato de ninguém parecer se importar com gravidade da situação que se avizinhava. Hoje, felizmente, as coisas são diferentes e a sociedade passou a se tomar o assunto em consideração. E eis aí o dia da água que não me deixa mentir.
Mas a que situação me refiro? Porque ela é grave? Afinal, ao contrário do petróleo, a água é um recurso natural renovável. Então por que a preocupação?
Bem, vamos por partes. Para começar: não há vida sem água.
Nem na Terra nem em qualquer outra parte do universo. A água é essencial a qualquer forma de vida. Nós, por exemplo, não somos animais aquáticos mas somos feitos de água. Achou estranho? Então surpreenda-se: oitenta porcento da massa de nosso corpo corresponde a água (e quem olha para a Mariana Ximenes nem desconfia, nénão?). E quanto mais se percorre a escala das formas de vida no sentido daquelas mais simples, mais a água se torna essencial. De fato os organismos unicelulares – que não são apenas as mais simples, mas também as primeiras formas de vida – não poderiam se nutrir fora de um meio aquático, já que sua alimentação depende essencialmente de um fenômeno denominado “osmose”, que só pode ocorrer em meio aquático. E, seja lá qual for a teoria que se adote, a origem da vida está nas formas unicelulares, que ao longo de centenas de milhões de anos evoluíram, se agruparam e deram origem a outras, consideradas “superiores”, cujos organismos são formados por conjuntos de células idênticas (e, funcionalmente, muito parecidas com as dos unicelulares), mas organizadas em tecidos que formam os órgãos que formam os aparelhos (digestivo, circulatório, respiratório, etc.) que mantêm a vida. Mas que, superiores ou não, continuam dependendo da água para existirem já que as células, seu constituinte básico, nada mais são que pequenos sacos de citossoma envoltos por uma membrana semipermeável. E o constituinte essencial do citossoma é a água.
Por isso os cientistas que estudam o cosmos se preocupam tanto com o fato de haver ou não água em um corpo celeste. Na verdade o que lhes interessa é saber se, naquele corpo em particular, há ou não condições para o estabelecimento de vida, e a vida só pode se estabelecer onde há água (o que reduz significativamente a probabilidade de existência de vida em outros corpos celestes que não a Terra, já que tal corpo deverá ser um planeta que orbite em torno de uma estrela – de onde receberia energia radiante, também indispensável à vida – deslocando-se em uma órbita que jamais o leve a uma distância tão próxima da estrela que toda a água se evapore ou tão longe que toda ela se congele; a condição é extremamente restritiva e a probabilidade que tal planeta seja encontrado é remota mas, afinal, em torno de uma das bilhões de estrelas que existem nas milhões de galáxias que formam o universo, até mesmo a menor das probabilidades tem condições de se materializar, e está aí a própria Terra que não me deixa mentir; mas que ela é um planeta privilegiado no que toca a oferecer condições favoráveis à eclosão da vida, isso é inegável).
Efetivamente, segundo a teoria da “sopa primordial”, a mais aceita pelos meios científicos para justificar a biogênese (origem da vida), a vida estabeleceu-se em nosso planeta em um momento qualquer a partir de 4,4 bilhões de anos atrás. Por que exatamente 4,4 bilhões de anos? Porque até então a Terra era praticamente uma bola de magma fundido e toda a água estava vaporizada. Foi somente a partir de então, quando a água começou a se condensar, que surgiram condições para que a vida se estabelecesse com a formação daquilo que poderíamos chamar de precursores dos oceanos: um enorme acúmulo de água condensada com elevadas concentrações de elementos necessários à síntese dos compostos essenciais à vida, como carbono, ferro e enxofre. Este líquido foi batizado de “sopa primordial” e os defensores da biogênese química afirmam que, há cerca de 2,7 bilhões de anos, nele e na atmosfera então vigente no planeta, formada predominantemente por gases como amônia, hidrogênio, metano e do próprio vapor d´água, começaram a se formar os primeiros compostos orgânicos em reações catalisadas pelas descargas elétricas atmosféricas (raios).
E, de fato, em 1953, o então estudante Stanley Miller, orientado por seu professor Harold Urey, levou a cabo na Universidade de Chicago o revolucionário Experimento de Urey-Miller que, empregando um aparato como o mostrado na Figura, conseguiu sintetizar em laboratório alguns aminoácidos. Que são, como se sabe, os principais constituintes das proteínas (uma proteína é uma sucessão de aminoácidos ligados em cadeia), o componente essencial dos organismos vivos. O próprio DNA, embora não seja uma proteína, é formado por compostos constituídos predominantemente por átomos de Carbono, Hidrogênio, Oxigênio e Nitrogênio (o famoso “CHON” da química orgânica). E, a quem estiver interessado em mais detalhes sobre este experimento, recomendo assistir ao vídeo do Science Channel “Greatest Discoveries: Origin of Life”. Dura apenas alguns minutos, mas dá uma idéia razoável do experimento (infelizmente, narrado apenas em inglês).
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Figura 3: O Experimento de Urey-Miller |
Portanto, a vida nasceu na água. E, sem ela, não pode se manter.
Mas água não falta no planeta e, tanto quanto nos é dado perceber, jamais faltará. Afinal, os oceanos recobrem três quartas partes de sua superfície. Então pra que tanta alaúza?
Acontece que, neste planeta antropocêntrico, a água é classificada basicamente pela forma como é utilizada pela espécie humana. E a água dos oceanos, embora tenha lá sua utilização (predominantemente navegação e refrigeração, além de pesca, recreação e outros), não se presta aos dois usos mais importantes para o homem: sua dessedentação e irrigação de lavouras. Porque é salobra (contém elevada concentração de sais dissolvidos, predominantemente cloreto de sódio). E a água dos oceanos corresponde a 97,5% do total de água do planeta.
Ficamos assim restritos aos 2,5% remanescentes, a chamada “água doce”, disponível nos rios, lagoas, geleiras e glaciares.
Esses 2,5% seriam mais que suficientes para o consumo da humanidade. Porém, nesse caso, o problema não é a quantidade. O problema é a qualidade.
Mas e água tem qualidade? Existirá água boa e água ruim? (não, não me refiro à água que passarinho não bebe, me refiro à água mesmo, esse líquido que qualquer garotinho – menos um – conhece a fórmula química: H2O).
Sim, existe. E os primeiros a descobrirem isso foram os romanos, lá pela época do nascimento de Cristo. Porque o que começou a deteriorar a qualidade da água foi o estabelecimento das cidades. E há dois mil anos Roma já era uma cidade que se poderia considerar grande mesmo para os padrões modernos: em um planeta onde viviam menos de trezentos milhões de almas, ela já abrigava quinhentos mil delas.
Mas o que têm as cidades a ver com isso?
Tudo.
Mas vamos ter que deixar a resposta para a próxima coluna. Pois esta, que deveria ser uma coluna curta e despretensiosa, por excesso de entusiasmo do autor acabou virando algo que viria a ser uma coluna longa e despretensiosa. E por isso terá que ser fracionada.
Mas, prometo, a resposta a esta questão – e à questão proposta lá no início, a do copo de esgoto – virá mais breve do que de costume.
Até lá.
B.
Piropo