Sítio do Piropo

B. Piropo

< Coluna em Fórum PCs >
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05/10/2009

< Livros e amigos >


Minha primeira experiência como professor no campo da informática deu-se há mais de dez anos lecionando uma disciplina cujo nome “oficial” já não me ocorre. Mas lembro bem de seu objetivo: fornecer, a estudantes do primeiro período de um dos cursos superiores ligados às ciências da computação, uma visão geral da informática, de seus desdobramentos e campos de aplicação. E como (não canso de repetir...) somente pode entender o presente e vislumbrar o futuro quem conhece o passado, grande parte da ementa da disciplina era dedicada à história da informática, desde os tempos dos primeiros dispositivos programáveis desenvolvidos pelo homem (ganha um doce quem disser quais foram) até os magníficos processadores “de 32 bits”, que na época representavam o estado da arte.

O tema era absorvente. A história da tecnologia da informática – e, nas últimas décadas, de sua irmã mais velha, as telecomunicações, com quem praticamente se fundiu – é uma sucessão de feitos extraordinários, frutos das mentes mais privilegiadas do planeta nos últimos séculos. Seu desenvolvimento vertiginoso a partir da metade do século passado, as mudanças que trouxe ao comportamento de nossa sociedade, o grau quase inacreditável de miniaturização dos novos componentes, tudo isso é tão extraordinário, tão fantástico, tão magnífico que, em minha humilde opinião, só não nos mantemos em um permanente estado de deslumbramento com estas façanhas tecnológicas porque, por fazerem parte de nossas atividades cotidianas, nos acostumamos a elas de tal forma que passamos a achá-las naturais. Mas basta pensar um pouco para percebermos que um ser humano hipoteticamente transportado diretamente de meados do século passado para os dias de hoje ficaria tão atônito e embevecido diante de computadores, telefones celulares, televisões a cores de alta definição e quejandos quanto ficaram os índios diante da tecnologia européia trazida pelos descobridores há quinhentos anos.

Quanto mais eu estudava para preparar minhas aulas (sim, professor também estuda; e, se tiver a pretensão de ser bom professor, estuda muito), mais me interessava pelo assunto e mais me convencia que aquilo seria um excelente ponto de partida para um bom livro. Bastaria raspar um pouco o verniz acadêmico, aparar as histórias aqui e ali para remover os exageros e patriotadas, podar o excesso de tecnicismos, juntar aos fatos científicos alguns acontecimentos pitorescos, temperar com uma ou outra pitada de humor, dar um pouco mais de ênfase às gentes que às máquinas, enfeitar aqui e ali com algumas fotos e imagens bem ilustrativas, embrulhar tudo em “prosa de botequim” e servir ainda quente, senão o futuro atropela o passado e o livro perde a atualidade. E, assim pensando, comecei a juntar material.

Um belo dia, lá pelos idos de 1999, meu amigo Ricardo Rangel, que na época escrevia, como eu, no caderno “Informática Etc.” do Globo, me agraciou com um presente. Um belo presente. Um livro, de sua autoria, intitulado “Passado e Futuro da Era da Informação” (Editora Nova Fronteira, 80p., 1999, ISBN: 8520909809). Taí a capa, na Figura 1, para não me deixar mentir.

Figura 1: Livro do Ricardo Rangel.

Realmente, o livro era excelente. Agradável, fácil de ler graças ao estilo leve porém tecnicamente impecável do Ricardo (aliás... por onde andará meu amigo? Há tempos não o vejo nem sei notícias), uma beleza. Só tinha um defeito (pelo menos no que diz respeito a mim): era exatamente o livro que eu pretendia escrever.

Fazer o que?

Nada. Exceto, é claro, me deliciar lendo o livro e arquivar o material que, de um modo ou outro seria usado mais adiante (parte dele resultou nas colunas sobre os velhos Babbage e Jacquard, o gênio Fibonacci, Tesla, o louco manso, a Almirante Hopper e uma ou outra bobagem que andei publicando aqui mesmo no ForumPCs).

Mesmo porque, se tem um homem que não pode se queixar da vida, esse cara sou eu. E como me queixar se a vida me deu muito mais do que mereço? Pois, para quem não sabe, aqui declaro e dou fé: sou um homem rico. Muito rico. E sou rico de caso pensado, posto que dediquei minha vida a amealhar riquezas, a ponto de possuir hoje uma imensa fortuna. E bota imensa nisso...

É verdade que bens materiais de valor não possuo. Dinheiro, muito menos . Exceto, é claro, aquele necessário para levar uma vida decente, sem luxos porém sem penúria (como diria meu amigo João Ubaldo, “dinheiro pouco, tenho muito”). Apesar da idade, não me aposentei. Seja porque viver é como andar de bicicleta (se parar, cai), seja porque não dá mesmo: há que trabalhar para garantir o pão de cada dia. E, com meu trabalho, ganho o suficiente para suprir as necessidades diárias e viver com conforto. E, suma: dá para o gasto (se bem que ultimamente a coisa tem andado meio braba, mas vai se levando que dinheiro não é importante).

O que não quer dizer que eu não seja rico. Sou, como já disse, mas minha fortuna não é feita de dinheiro ou bens materiais. Ela transcende tudo isso porque se restringe ao que realmente importa. Pois passei a vida acumulando o único tipo de riqueza que vale a pena posuir: saber e amizades. Mais estas que aquele, devo admitir.

Com o saber, costumo ser pródigo. Faço o possível para distribui-lo tanto quanto a vida me permite. Faço isso aqui no FórumPCs, nos jornais com os quais colaboro (atualmente, Estado de Minas e Correio Brasiliense) e nas aulas que dou (na PUC/RJ e na UniverCidade). E, ao contrário do que ocorre com dinheiro, quanto mais saber distribuo, mais dele acumulo. Porque como não gosto de escrever sobre (e ensinar) aquilo que desconheço, cada tema exige alguma pesquisa para garantir que não vou escrever ou dizer bobagem (na medida do possível, naturalmente; como bem sabem os que lêem minhas colunas, de vez em quando escapa uma ou outra...). E assim vou aprendendo coisas novas e me tornando ainda mais rico. Sem jamais deixar de me encantar com o fato de que este tipo de riqueza tem uma qualidade peculiar: quanto mais dela distribuo, mais dela cresce meu cabedal.

Já com os amigos, sou avaro. Desfruto, calado, de sua amizade e não costumo dividi-los. Raramente falo neles, embora reconheça que sem eles eu seria um pobre homem, já que a maior parte de minha riqueza é por eles constituída. Coleciono amigos há tanto tempo que posso me orgulhar de não caber nos dedos das duas mãos o número de amigos que tenho – e com os quais convivo regularmente – há mais de meio século. Há ou não razão de me orgulhar de tamanha fortuna?

Por exemplo: como sabem os que acompanham esta coluna, estive recentemente em San Francisco a convite da Intel, na boa e velha Califórnia, EUA, para participar do Intel Developer Forum. San Francisco é, na minha opinião, uma das três cidades mais deslumbrantes do planeta (pelo menos da parte dele que conheço; e, antes que me perguntem: as outras duas são Rio de Janeiro e Veneza, com Roma e Paris merecendo menção honrosa, mas reitero tratar-se apenas de gosto pessoal e o assunto não está aberto para discussões).

E lá estive muito bem acompanhado. Pois durante a maior parte da viagem desfrutei da luxuosa companhia do amigo Mário Nagano.

Para quem não conhece (se bem que dificilmente neste Forum haverá quem não conheça tal personagem), trata-se de um brilhante analista de hardware. Hoje, além de colaborar com a revista Galileu, é uma das duas mentes privilegiadas responsáveis pelo < http://zumo.uol.com.br/ > Zumo Blog (a outra é a do Henrique Martin) e mantém seu próprio sítio, < http://mnagano.wordpress.com/ > “mnagano.com – bits, bytes e bravatas”. Nagano, segundo seu perfil, “passou a última década analisando produtos e escrevendo sobre hardware e tecnologia para veículos como PC Magazine, IDGNow! e PC World. Até recentemente, foi editor de testes, geekmeister e mentor intelectual do PC World Test Center do IDG Brasil”. E, com a modéstia que lhe é peculiar, acrescenta: “Nas horas vagas, curte fotografia analógica e digital”. Eu não sei exatamente o que o Nagano considera “curtir”, mas sei que ele é um dos melhores fotógrafos que conheço.

O Nagano é uma figura, e para provar, aí está ele na Figura 2 (devidamente capturada de uma tela do Flick mostrando uma foto do Zumo).

Figura 2: Mario Nagano.

Como se vê pela foto, o Mário é um sujeito sério. Raramente fala, e quando o faz tropeça nas palavras porque tenta fazer a fala acompanhar a rapidez de seu raciocínio, uma façanha inexequível. Mas se você estiver por perto, vale a pena se esforçar para entender, já que o homem não é de desperdiçar palavras nem de jogar conversa fora. E preste atenção dupla, porque por detrás de seu ar de seriedade oriental se esconde uma finíssima ironia e um humor mais cortante que espada de samurai.

Mas o Nagano é, sobretudo, um amigo daqueles de dar orgulho. Durante todos estes anos que o conheço, jamais o vi negar auxílio ou dirigir uma palavra grosseira a quem quer que fosse. Infelizmente convivo pouco com ele. Mas o convívio, quando ocorre (quase sempre em eventos de informática dos quais participamos ambos) é sempre prazeroso. Como foi neste IDF.

Mas o Nagano não foi o único amigo que encontrei no IDF. Pois lá estava também, em companhia do filho, o Professor Zuffo.

Figura 3: Prof. João Antonio Zuffo.

Este é outro amigo com o qual convivo pouco, raramente o vejo (também quase sempre em eventos), mas cuja companhia é sempre agradável, prazerosa e, sobretudo, instrutiva. Porque o homem é aquilo que se pode classificar como “poço de sabedoria”. Professor e pesquisador titular da Escola Politécnica da USP, coordena o laboratório de Sistemas Integráveis, já publicou 14 livros e mais de centena e meia de trabalho, orientou mais de trinta teses e é membro de 16 sociedades científicas e profissionais. Se você se der ao trabalho de consultar < HTTP://lattes.cnpq.br/9663135666985531 > seu currículo no sistema Lattes, prepare-se para percorrer um bocado de páginas. O homem é um cientista da mais pura estirpe.

De uma pessoa assim espera-se sisudez e austeridade. No entanto, paradoxalmente, jamais vi meu amigo Zuffo sem um sorriso amistoso nos lábios. Com sua formação cultural eclética, que se estende pelos campos das disciplinas sociais, históricas, culturais e humanas, jamais se nega a discutir qualquer tipo de assunto. E o faz sempre com tal elegância que a conversa se torna interessante e o interlocutor mal se da conta da passagem do tempo. Por exemplo: há algumas semanas conseguiu a proeza de transformar em uma conversa que não pareceu durar mais de quinze minutos algumas horas de espera no aeroporto de Miami pelo embarque para San Francisco.

Conversa na qual mencionou que “tinha escrito um livrinho” que talvez eu gostasse de ler. Como o tema de fato me interessava e ele tinha alguns poucos exemplares na bagagem, prometeu que me daria um durante o IDF.

Pois não é que deu mesmo?

No final de 2005 (final mesmo, na última semana do ano) me meti a escritor de ficção. Foram duas colunas seguidas, publicadas aqui mesmo neste Fórum e intituladas “Mudando de Ano”. Contava as atribulações de um detetive particular às voltas com um caso de suspeita de adultério. Um texto sem nenhuma qualidade literária e cujo principal interesse estava mais na descrição do ambiente que no desenrolar dos acontecimentos.

Isto porque, quando me convidam para fazer palestras em eventos e instituições de ensino, costumo abordar o tema da influência que a evolução da tecnologia, sobretudo nos campos de telecomunicações e informática, exercem e exercerão em nossa vida diária hoje e no futuro próximo. E tanto fucei sobre o assunto que acabei juntando uma quantidade razoável de informações sobre como será nossa vida (melhor: sobre como espera-se que venha a ser nossa vida) dentro de duas ou três décadas. Coisas como implantação de “chips” RFID nos corpos de humanos (que não é não tão futurista assim: já se pensa em usá-los para controle de apenados), automóveis “inteligentes” e coisas que tais. E era justamente este o cenário onde se desenvolviam os fatos narrados na coluna: nosso mundo, porém dentro de algumas décadas.

Publiquei as colunas imaginando que, fossem elas mais bem acabadas e se eu conseguisse agregar a novas colunas do mesmo tipo alguma qualidade literária e um pouco de imaginação criativa para conceber “enredos” mais envolventes, quem sabe tudo aquilo junto não daria um livro? Um livro de contos mais ou menos no estilo da ficção científica onde as ações se desenrolariam no futuro próximo no qual os personagens estariam cercados de objetos e dispositivos hoje inexistentes mas cuja possibilidade de serem fabricados dentro de alguns anos fosse garantida pela evolução das tecnologias atuais.

Idéia interessante, pois não?

O problema é que ela exigiria tempo, dedicação, inspiração e talento, justamente os ingredientes que têm me faltado ultimamente. Por isto, desde 2006, a tarefa vem sendo posta de lado à espera que, quem sabe um dia, eu tivesse ânimo para me dedicar a ela.

O leitor amigo está meio confuso com o rumo que vem tomando esta coluna? Não entende o que os amigos, a viagem, os livros e as colunas metidas a futuristas que escrevi têm a ver uns com os outros? Já explico.

Pois acontece que o “livrinho” de meu amigo Zuffo só merece o diminutivo porque, de fato, não é grande nem no formato nem no número de páginas, que pouco passam de duzentas. Fora isso, é um grande livro. Seu título é “Flagrantes da vida no futuro” (Editora Saraiva, 232p., 2008, ISBN: 978-850206572-7).

Quer dizer: mais uma vez um amigo escreve justamente o livro que eu queria escrever. Com a diferença que, sendo Diretor do Laboratório de Sistemas Integráveis da USP, o embasamento tecnológico de mestre Zuffo para prever as tecnologias a serem usadas no futuro (seu livro se passa em 2038) é infinitamente maior que o deste pobre escrevinhador que batuca neste teclado.

Figura 4: Livro “Flagrantes da vida no futuro”.

O livro do Prof. Zuffo não se propõe a contar uma história. Trata-se mais de uma coletânea de cenas isoladas da vida diária de alguns membros de famílias de diferentes classes econômicas que vivem na cidade de São Paulo (ou no que sobrou dela) no final dos anos trinta deste século. Mas, sem querer contar, acaba contando, pois os personagens de Mestre Zuffo são sempre os mesmos e suas ações e atribulações vão se sucedendo no tempo.

A visão de como será o mundo daqui a três décadas a partir do ponto de vista de um cientista competente com formação cultural ampla como Mestre Zuffo é fascinante. Clones pessoais, entidades virtuais inteligentes (VANV, ou Vida Artificial Neuronal Virtual), a grande rede (que se chamará TOSFAM, ou Teia Óptica Sem Fio de Âmbito Mundial, WWWOW, em inglês), comunicação direta cérebro-máquina e outras tantas “invenções” permeiam todo o livro. E a prosa interessante de Mestre Zuffo, seu cuidado com o idioma (propõe o uso de “circuitaria” para traduzir “hardware”, uma proposta que vale a pena examinar com carinho) e a leveza dos temas abordados tornam a leitura do livro uma atividade quase tão agradável e absorvente como uma conversa com o autor.

Quer dizer: Preciso tomar mais cuidado com os amigos que escolho. Porque se eu continuar cultivando esse tipo de amizade, nunca mais publicarei livro algum. Afinal, sempre que uma idéia interessante me ocorre, acaba aparecendo um amigo que, sem saber que também a tive, publica justamente o livro que eu queria escrever...

Também, quem manda ser retardado...

PS: E por falar em livros e amigos, recebi recentemente o mais novo livro de Gabriel Torres: a versão revisada e atualizada de “Redes de Computadores” (Editora Novaterra, 832p., 2009, ISBN: 8561893052).

Este é um livro que eu jamais escreveria. Não por falta de qualidade do livro, mas por falta de conhecimento meu. Há demasiados detalhes técnicos envolvidos e redes nunca foram o meu forte.

O livro é massudo (não maçante, por favor!), pesado (em ambos os sentidos: no conteúdo denso e no peso físico), e explora o assunto de forma esmerada e completa. São trinta capítulos fartamente ilustrados que vão desde os conceitos introdutórios sobre redes até descrições pormenorizadas de montagens práticas de diversos tipos de servidores, passando por discussão de protocolos, cabeamento e dispositivos acessórios, como roteadores e hubs. Taí, na Figura 5, a capa do livro. A foto é do autor, não do galã da próxima novela das oito.

Figura 5: Livro Redes de computadores.

Para quem gosta de redes ou para os estudantes e profissionais que militam nessa área, o livro é um prato cheio. Parabéns, meu amigo (também meio sumido) Gabriel, pelo lançamento.

Em tempo: respondendo à pergunta do primeiro parágrafo, os primeiros dispositivos programáveis desenvolvidos pelo homem foram as caixas de música fabricadas nos idos do século XVI para desfrute da realeza e dos poderosos de então.

 

 

B. Piropo