Sítio do Piropo

B. Piropo

< Coluna em Fórum PCs >
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13/04/2009

< A síndrome do “Eu só trabalho aqui” >


Há quase três anos (em junho de 2006, para ser exato) postei aqui mesmo a coluna intitulada “O rei dos vendedores” que, para os padrões deste Fórum, fez sucesso. Despertou o interesse de mais de quarenta mil leitores e, curiosamente, ainda provoca comentários (o último foi postado há menos de um mês). O mais interessante é que a razão que me levou a escrever a coluna não tinha muito a ver com aquela que despertou os comentários – e, provavelmente, que atraiu tantos leitores. Pois acontece que a coluna falava sobre um cavalheiro que, dirigindo seu taxi, sem insinuar qualquer vontade de vender o que quer que fosse, conseguia despertar no passageiro a intenção de comprar um produto que, “por acaso”, ele vendia. Ou seja: o que chamou minha atenção e me motivou a levar o assunto ao conhecimento dos leitores foi a extraordinária habilidade do cavalheiro em vender seu produto – daí o título da coluna. Ocorre, no entanto, que o produto era uma coletânea de músicas antigas, compilada por ele, remasterizada a partir de velhos discos LP e gravada em CDs. O que configurava a venda de um produto “pirata”. E foi em torno disso que, em sua maioria, giraram os comentários.
Pois bem: hoje volto a invadir a seara do meu amigo Luis Sucupira abordando um tema que pouco tem a ver com tecnologia, meu assunto predileto, mas que de uma forma ou de outra afeta praticamente todas as atividades humanas – inclusive, naturalmente, aquelas ligadas à tecnologia: o esforço e, sobretudo, o interesse dedicado ao trabalho nosso de cada dia.
Tome como exemplo o taxista lá do primeiro parágrafo. Sua obrigação era dirigir o taxi e levar o passageiro da origem ao destino pelo trajeto mais rápido e ele a cumpriu com eficiência. Pois bem: além dela, através de uma conversa agradável e convincente, ele me induziu a comprar seus discos (e ainda por cima informou que seus serviços estavam disponíveis caso eu precisasse de remasterizar algum velho LP de vinil) de forma absolutamente casual e não invasiva. E como o preço dos discos foi maior do que o da corrida, provavelmente seu lucro como vendedor era maior que como taxista. Sem entrar na discussão ética da natureza do produto (ou seja, abstraindo-se o fato de que ele estava vendendo um CD “pirata”), há que se admirar forma pela qual a venda foi feita. Porque, pensando bem, ele não vendeu. Eu é que comprei (se quiser entender melhor o porquê desta afirmação, leia a coluna sem considerar a natureza do produto vendido).
Agora vamos comparar o comportamento do simpático Paulo Gilberto (esse era o nome do taxista) com o dos dois cavalheiros dos “causos” seguintes.
Vamos a eles.
Deu no Globo (edição de sexta-feira, 10 de abril de 2009, primeiro caderno, página 11): “Barcas S/A pede que usuários não usem barcas – Empresa quer que passageiros procurem outros transportes durante o rush para evitar tumultos como o de anteontem”.
Entendeu?
Eu não.
Explicando para quem não é da região: Rio de Janeiro e Niterói são cidades vizinhas, separadas pela deslumbrante entrada da Baía da Guanabara. Somente o Rio (ou seja, sem contar os demais municípios de sua Região Metropolitana) abriga mais de seis milhões de habitantes. Niterói, que já foi capital do antigo Estado do Rio de Janeiro antes da fusão com o Estado da Guanabara, tem pouco menos de meio milhão. São, portanto, duas cidades de médio a grande porte separadas por uma baía. Por serem vizinhas e devido ao grande número de cidadãos que vivem em uma delas e trabalham na outra, é grande o fluxo de pessoas entre ambas.
Há três maneiras de efetuar o trajeto Rio - Niterói: contornando a Baía da Guanabara por estrada em um percurso de mais de cem quilômetros, cruzando os quatorze quilômetros da Ponte Presidente Costa e Silva, mais conhecida como “Rio - Niterói”, e por barco. Esta última é a forma tradicional, por mais antiga: o transporte público regular por barcas ligando as duas cidades foi inaugurado há século e meio pela Companhia Cantareira e Viação Fluminense, as saudosas “barcas da Cantareira” que, até a inauguração da Ponte em 1974, foi praticamente a única forma de se deslocar de uma cidade a outra (inclusive de automóvel, transportados em uma velha barcaça tipo “ferry boat” que já não mais existe).
Inaugurada a Ponte, seria de esperar que o transporte por barcas definhasse. O que de fato ocorreu por algum tempo. Mas o grande fluxo de veículos através da ponte e os consequentes engarrafamentos, as dificuldades de estacionamento em uma cidade e na outra, a comodidade de embarcar no centro de uma e desembarcar no centro da outra, fizeram que o transporte por barcas mantivesse sua clientela que, com o aumento da população de ambas as cidades, vem crescendo ao longo dos anos (estudos recentes mostram que a taxa de crescimento é da ordem de 17% ao ano). Portanto o transporte hidroviário entre Rio e Niterói tem uma freguesia cativa, garantida, crescente e fiel. Ou seja: tudo o que é preciso para ser um bom negócio.
É verdade que logo após a inauguração da Ponte as coisas ficaram difíceis. Tanto assim que em 1977 a velha Cantareira acabou por passar para as mãos do Governo do Estado do Rio de Janeiro e adotou o nome de Conerj (Companhia de Navegação do Estado do Rio de Janeiro), operando todo o sistema de transporte aquaviário do Estado (além da ligação Rio - Niterói há ainda a Rio - Paquetá, linhas que ligam o Centro do Rio à Ilha do Governador, ao bairro de Charitas, em Niterói, e linhas que ligam a Ilha Grande a Mangaratiba e Angra dos Reis).
Em 1998, com o aumento do fluxo de passageiros, a Conerj foi privatizada. Seus novos donos a batizaram de Barcas S/A Transportes Marítimos e passaram a explorar o serviço.
E acho que poucas vezes o termo “explorar” foi empregado com tamanha propriedade...
Tanto quanto eu saiba, desde então nenhum investimento de monta foi feito seja para melhoria, seja para simples manutenção. As barcas estão em mau estado de conservação, algumas linhas foram interrompidas, o número de barcas foi reduzido, os intervalos entre viagens cresceu. Em resumo: na medida que aumentava o número de passageiros, a capacidade de transportá-los foi diminuindo.
Pois bem: no final da tarde de 8 de abril passado, uma quarta-feira especialmente movimentada, com a estação de embarque da Praça XV no Centro do Rio completamente lotada de passageiros que pretendiam retornar a Niterói depois de um dia de trabalho duro, os atrasos e a superlotação das barcas afinal fizeram com que a multidão se revoltasse. Resultado: um “quebra-quebra” generalizado que precisou ser contido pela polícia e redundou em grandes prejuízos materiais.
Dois dias depois, entrevistado pelo Globo, o superintendente das Barcas S/A – cujo nome não cito por pouco importante, já que o que se analisa aqui é sua atitude – “orientou as pessoas a evitarem as barcas durante o rush”. Segundo ele, o problema somente se resolverá se o Estado – que não é proprietário da empresa – investir na compra de três embarcações e na construção de estações mais amplas no Rio e Niterói, cujas obras deverão demorar pelo menos dois anos. Ainda segundo ele (citação literal do jornal): “Até lá, quem puder deve evitar os horários de maior movimento ou usar outro tipo de transporte” (grifo nosso). E acrescentou: “O que houve foi uma situação atípica. Muitos passageiros chegaram ao mesmo tempo e não tivemos capacidade de transportá-los”. Um comentário no mínimo esdrúxulo, já que me custa entender como uma situação que se repete diariamente na hora de maior movimento pode ser considerada “atípica”. E como a chegada de “muitos passageiros ao mesmo tempo” pode incomodar o superintendente de uma empresa cujo única fonte de receita é justamente transportá-los.
Resumindo: temos um superintendente de uma empresa cujo negócio é transportar passageiros e cuja demanda cresce continuamente, reclamando que o número de passageiros está demasiadamente alto e recomendando a seus clientes que procurem outro meio de transporte. Eu sei que parece inacreditável mas não inventei isso: foi publicado no Globo para quem quisesse ler.

Figura 1: “Não me pergunte. Eu só trabalho aqui”

O outro “causo” aconteceu há muito tempo. Lá pelo final dos anos setenta do século passado, quando por questões de trabalho morei durante meio ano em Porto Alegre. Bons tempos, cidade agradável onde conquistei amizades que desfruto ainda hoje apesar da distância e da pouca frequência com que tenho lá retornado.
Mas nada disso interessa. O que de fato interessa é a atitude de um cavalheiro, gerente ou algo parecido, da maior agência dos Correios e Telégrafos de Porto Alegre.
Pois eis que por razões de ofício eu precisava despachar um documento de lá para o Rio, onde ficou minha família durante o período em que vivi em plagas gauchas. Já lá se vão trinta anos, tempo em que fax, Internet e escaneamento de documentos não havia. Havia é que pô-los em um envelope e enviá-los em remessa “registrada”. E lá fui eu, envelope em punho, para a agência central dos correios de Porto Alegre, nas bandas do Mercado Municipal.
Em lá chegando encontrei uma balbúrdia monumental. Uma confusão dos diabos, filas imensas cruzando o saguão, gente a não acabar, um medonho tumulto. E os poucos funcionários da então autarquia claramente não davam conta do recado. Era o caos.
Mas qual a razão daquele caos?
Bem, é que poucas semanas antes alguém dera início a uma destas “correntes” para ganhar sei-lá-o-quê. Era daquele tipo de corrente que você recebia uma correspondência da qual tinha que enviar uma cópia para umas tantas pessoas que, por sua vez, enviariam outras tantas cópias para outras tantas pessoas e assim sucessivamente.
Em geral este tipo de coisa não dá em nada. Ninguém a leva a sério e em pouco tempo ela se esgota e é esquecida. Mas naquele caso particular, por razões que jamais descobri, a coisa “pegou” (tanto quanto eu saiba foi um fenômeno local, não lembro que tenha se alastrado pelo Brasil; mas se algum gaucho bom de memória lembrar exatamente do que se tratava, favor postar um comentário; o fato se deu lá pelos idos de 1978 ou 1979). E quando uma corrente “pega”, o número de participantes cresce exponencialmente, ou seja, multiplica-se por um determinado fator em intervalos constantes. O que, no “causo” em tela, resultou em um rápido e maciço crescimento do número de cartas postadas no Rio Grande do Sul. Principalmente em Porto Alegre.
O resultado foi o caos nas agências de correio. E subitamente eu me vi perdido no meio de uma delas, precisando postar um documento que deveria chegar ao Rio com urgência, sem conseguir porque ninguém se entendia no meio daquela alaúza e sem ter a menor ideia sobre como proceder. E, pior, sem ter a quem recorrer.
Em situações como esta costumo praticar aquilo que meus colegas aqui do Fórum, bons e velhos companheiros de muitas viagens, classificam de “piropice”. Não sei do ponto de vista deles (mas como a maioria deles colaboram aqui no FPCs e, portanto, presumo que lerão estas mal traçadas, os comentários estão abertos para que cada um deles deixe aqui suas impressões) mas, do meu, uma “piropice” é algo que acontece sempre que sou mal atendido por um profissional cuja obrigação é prestar ao público um serviço de boa qualidade e não o faz. Situação na qual eu procuro identificar quem é o responsável pela cangancha e solto os cachorros sobre o indigitado. E costumo soltá-los, digamos, de forma bastante exuberante. E bota exuberante nisso (há quem não as aprove, mas após décadas de experiência posso garantir que uma boa “piropice”, aplicada com os devidos denodo e ênfase, costuma resolver o problema).
E assim foi feito. Gerente encontrado, piropice aplicada, e lá fui eu guiado pelo próprio através do labirinto burocrático necessário para registrar e despachar a correspondência.
Resolvido o problema, agradeci ao cavalheiro. Ocasião na qual ele, tentando justificar o caos de sua agencia, me dirigiu um compungido pedido de desculpas solicitando que eu relevasse o péssimo atendimento obtido em sua agência que, segundo ele, era causado “por aquela maldita corrente” que tinha feito aumentar substancialmente o número de correspondências enviadas. Acrescentando que aquilo “deveria ser proibido” e “alguém precisava tomar providências” porque do jeito que estava não poderia continuar.
Os fatos: o sujeito era gerente de uma agência dos correios, uma instituição que, na época (antes da Internet e do correio eletrônico) devia a maior parcela de sua receita ao envio de correspondência e subitamente o número de cartas enviadas cresce muito além do esperado. Se algo parecido ocorresse com, digamos, o dono de uma quitanda especializada na venda de bananas onde um belo dia o consumo de bananas decuplicasse, ele provavelmente exultaria e tomaria rapidamente providências para aumentar sua capacidade de vender bananas, aproveitando ao máximo a boa fase dos negócios mesmo entendendo que eventualmente ela iria passar. Dificilmente reclamaria do aumento do afluxo dos fregueses e pediria para que alguém tomasse providências para coibi-lo. Já o gerente dos correios achava que a maldita corrente que o fez trabalhar além do habitual “devia ser proibida”.
Perceberam a semelhança do comportamento do gerente da agência dos correios de Porto Alegre e do superintendente das Barcas S/A do Rio de Janeiro? E a diferença da atitude de ambos quando comparada à do taxista Paulo Gilberto?
Eu chamo esta atitude de síndrome do “eu não tenho nada com isso, só trabalho aqui”.

Figura 2: uniforme sugerido para os afetados pela Síndrome

Esta síndrome ataca principalmente – mas não exclusivamente – funcionários do serviço público, autarquias e empresas estatais, além de servidores do poderes legislativo e funcionários das diversas instituições que no Brasil são chamadas coletivamente pelo vocábulo “justiça” – se bem que me custe entender porque uma designação tão pouco apropriada é aplicada a algo baseado em um arcabouço jurídico que permite condenar à prisão e lá manter por um bom tempo um infeliz chefe de família que, eventualmente em estado de necessidade, praticou um furto em um supermercado e não dispõe de meios para contratar um advogado, enquanto mantém em casa um réu confesso e condenado por matar covardemente sua amante com um tiro pelas costas apenas porque “não se esgotaram todos os recursos” (suponho, financeiros, do assassino confesso). Ou eu não entendo o significado da palavra “justiça” – e neste caso pediria aos augustos juízes do Supremo que parassem de brigar entre si por um momento para me explicar melhor o conceito – ou essa coisa não merece o nome que tem.
Nos casos acima, a síndrome chega a ser compreensível, já que a receita das instituições citadas não depende nem de perto do desempenho de seus servidores, funcionários, serventuários ou seja lá o que forem. Portanto, trabalhando ou não, interessados em melhorar o desempenho ou não, dedicados ou não, o “dindin” está garantido na conta corrente todo final de mês. Mas o espantoso é que não são apenas eles – que o diga o superintendente das Barcas S/A, que embora preste um serviço público é uma empresa privada.
Na verdade, todos nós que trabalhamos conhecemos pelo menos um colega afetado pela síndrome. Basta reparar um pouco. Os sintomas variam de caso para caso, mas há algumas características comuns. Que não se resumem a “voar” no ambiente de trabalho enquanto deveria estar labutando ou “encostar” e “fazer cera” esperando o tempo passar até a hora de bater o ponto de saída (estes sintomas, quando isolados, são de outra patologia, mais conhecida como “vagabundagem”).
O que efetivamente caracteriza a síndrome do “eu só trabalho aqui” é uma eterna atitude de “eu não tenho nada com isso”. Um permanente dar de ombros quando algo sai errado, comportando-se sempre como quem não é responsável por nada do que ocorre em seu redor, mesmo quando se trata de cangancha séria aprontada por ele mesmo. Outro sintoma típico é encarar qualquer tarefa relativa ao trabalho, inclusive e principalmente aquelas que fazem parte de suas obrigações diárias, como um desagradabilíssimo aborrecimento, quase sempre acompanhado de uma expressão contrariada e por vezes do comentário “pombas, lá vem esse cara me trazer trabalho de novo”. A consequência deste último sintoma, caso o indigitado “colaborador” (para usar o termo politicamente correto) trabalhe em contato com o público, é uma atitude claramente inamistosa voltada para este público, geralmente acompanhada de maus tratos, comportamento arrogante e quase sempre agressivo. E o público (quer dizer, nós todos) que se aguente, embora nada tenha com isso.
Pois é isso.
Achou estranho o tema da coluna de hoje? Não entende por que cargas d´água eu resolvi dedicá-la a um assunto tão estapafúrdio depois de uma longa série destrinchando os aspectos técnicos e comerciais do Windows Seven?
Talvez por isso mesmo. Eu estava precisando mudar um pouco de assunto e acho que vocês, leitores, também.
Gostou? Acha conveniente que de quando em vez eu trate de um tema mais ameno? Que beleza! Por favor, deixe seu comentário aí embaixo dando conta disso.
Não gostou?
Tudo bem, direito seu.
Mas neste caso, reclame com o Paulo Couto. Ele é o Editor do Fórum.
Quanto a mim, não tenho nada com isso.
Eu só escrevo aqui...

 

B. Piropo