Sítio do Piropo

B. Piropo

< Coluna em Fórum PCs >
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31/12/2007

< Esta coluna não é sobre informática >


Se não é sobre informática, então o que ela estaria fazendo no Fórum PCs, um sítio eminentemente informático?

Bem, é que as demais colunas que escrevo, aqui e alhures, são. E esta tem a ver com a forma com que escrevo as outras. Por isso cabe aqui. E cabe melhor ainda por ser a derradeira coluna do ano de 2008, época azada para se tomar decisões, especialmente aquelas que não se sabe exatamente como cumpri-las. Então vamos a ela.

Negócio seguinte: estão esculhambando demais com nosso idioma. E isso tem me deixado deveras indignado.

Afinal, é uma língua bonita. Poucas oferecem tanta variedade de vocábulos a quem dela tira proveito para escrever. Poucas têm uma sonoridade tão suave, uma musicalidade tão agradável ao ouvido (o russo, talvez, mas não falo russo; sei apenas que a ouvidos estrangeiros se parece com o português, soando como a mesma “música”, porque mais de uma vez, no exterior, me perguntaram se eu falava russo quando conversava em público em português com compatriotas). Poucas são tão ricas. Nenhuma delas, que eu saiba, inspirou um poema tão belo e comovente quanto o “Língua portuguesa” de Olavo Bilac (veja Nota 1 no final da coluna).

Não obstante, a estão esculachando...

Esculacho feito com tal zelo, e sempre, e tanto (isso também veio de um poema) que já está até dando na vista e inspirando atitudes radicais: a CCJ, Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados, acaba de aprovar o Projeto de Lei Nr. 1676 de autoria do nobre deputado Aldo Rabelo, seu ex-presidente (sim, sei que o título não depõe favoravelmente no que toca ao caráter do Deputado, mas nesse caso particular toda sua vida pregressa depõe: é um “político sério”, expressão que mais parece um exemplo de oximoro ou contradição em termos mas no caso do Aldo Rabelo é mais que merecida) que “dispõe sobre a promoção, a proteção, a defesa e o uso da língua portuguesa e dá outras providências”.

Se você quiser, pode consultar a < http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=polemica/docs/polemica1 > íntegra do Projeto (e, se o fizer, recomendo ler com alguma atenção o item final, a Justificativa). Mas, em princípio, o que o projeto propõe no seu Artigo 3º é a obrigatoriedade do “uso da língua portuguesa por brasileiros natos e naturalizados, e pelos estrangeiros residentes no País há mais de 1 (um) ano... no ensino e na aprendizagem; no trabalho; nas relações jurídicas; na expressão oral, escrita, audiovisual e eletrônica oficial; na expressão oral, escrita, audiovisual e eletrônica em eventos públicos nacionais; nos meios de comunicação de massa” e em alguns outros contextos.

E aos que pensam que o Artigo é redundante por imaginarem que tudo isto já acontece sem necessidade de ser obrigatório por lei, sugiro prestar alguma atenção ao Artigo 4º que diz, textualmente: “Todo e qualquer uso de palavra ou expressão em língua estrangeira, ressalvados os casos excepcionados nesta lei e na sua regulamentação, será considerado lesivo ao patrimônio cultural brasileiro, punível na forma da lei”.

Percebeu agora? Se não percebeu, vamos esclarecer com um exemplo. Se o Projeto de Lei Nr. 1676, que tendo sido aprovado pela CCJ será brevemente submetido aos Plenários da Câmara e do Senado Federal, for ali aprovado e posteriormente sancionado pelo Exmo. Sr. Presidente da República (que não é conhecido por seu português escorreito e talvez por isso mesmo, quem sabe, decida sancionar o projeto para provar que embora maltrate a língua falada, se preocupa em preservar a escrita) será transformado em lei. Lei esta que, ao viger, considerará a frase “o mouse é um componente de hardware” lesiva ao patrimônio cultural brasileiro e punível na forma da lei por se constituir em expressão eletrônica publicada em um meio de comunicação de massa (este Fórum) e conter duas palavras em língua estrangeira. A punição proposta é multa de R$ 1.300,00 a R$ 14.000,00 para pessoas físicas e jurídicas, respectivamente.

Percebeu?

Pois é.

Eu, com a autoridade de quem vem escrevendo regularmente em “meios de comunicação de massa” eletrônicos ou não há mais de quinze anos, meios estes que incluem jornais e revistas de grande circulação e que, em todos estes anos, tenho me notabilizado pelo empenho contra o uso de palavras em língua estrangeira que raramente emprego em meus textos, ouso me dirigir ao congressista Aldo Rabelo para afirmar:

Não é por aí, nobre deputado. Não vai dar certo. Se aprovada e sancionada, o que eu duvido, sua lei não vai “pegar”.

Minha opinião sobre o Projeto de Lei Nr. 1676 não é nova. Em março de 2000, um ano depois da apresentação do Projeto (sim, o projeto vem rolando há quase nove anos nos sombrios desvãos burocráticos da Câmara dos Deputados), publiquei-a em um artigo no “Visão Digital”, o jornal do Diretório Acadêmico da FaCet / UNIG, onde eu então lecionava. Como tudo o mais que eu tenho publicado nesta década e meia, o artigo, intitulado “Língua” e datado de 16/03/2000, continua disponível na seção “Escritos / Visão Digital” do < http://www.bpiropo.com.br/ > Sítio do Piropo. Quem desejar poderá consultá-lo diretamente. Mas a opinião pode ser resumida em duas frases pinçadas do artigo citado:

A primeira: “Sim, estou de acordo com o fato de que devemos fazer tudo o que está a nosso alcance para defender o idioma. Mas acho que isso não se resolve por lei”.

A segunda: “Então, nobre deputado, por melhores que sejam suas intenções, não adianta aprovar a lei. Porque o problema só se resolverá quando aqueles que usam o idioma no seu dia-a-dia, os técnicos que escrevem relatórios, os profissionais que têm acesso aos meios de comunicação, os professores, os estudantes, o povo, enfim, estiver conscientizado da necessidade (e não da obrigatoriedade) de preservar seu idioma”.

Mas que cada vez que passo em frente a uma loja que faz “delivery”, que vejo um letreiro que anuncia “fast food”, que ouço a menção a “shopping center”, “trekking”, “hot dog”, “know-how”, “ranking”, “point” e similares (note que não citei um único termo ligado à informática...) dá uma insopitável vontade de apoiar a lei. Veja a Figura 1. “Seu” Nico não poderia ter aberto uma padaria que faz entrega em domicílio? Por que abrir uma “paneteria” que faz “delivery”?

Figura 1: “Paneteria” de seu Nico.

O problema é que não adianta. Proibir não vai funcionar...

Então, fazer o que?

Bem, antes de prosseguir vou deixar claro que o “fazer o que” aí de cima refere-se única e exclusivamente a mim, não a vocês. O que vocês vão fazer, como vão tratar o português, como se comportarão diante da questão, é problema de cada um. Como é problema de cada um falar e escrever corretamente, usar estrangeirismos, torcer por este ou aquele time, professar esta ou aquela religião e (suprema liberdade!!!) usar este ou aquele sistema operacional sem que ninguém venha criticá-lo. Em suma: cada um fala, escreve e trata o idioma como melhor lhe aprouver e como sua consciência mandar e eu nada tenho a ver com isso.

(Um parêntese: descobri esta verdade fundamental a duras penas em uma ocasião em que, sem qualquer motivo que o justificasse, me meti a dar pitaco nos escritos de meu amigo CAT, colega aqui do Fórum e uma das pessoas a que dedico maior apreço, estima e admiração, pelo uso de um determinado verbo; pois ocorre que o bom Carlos Alberto, santa alma e boa gente, agastou-se com justa razão e me plantou uma senhora e mui merecida espinafração; foi assim que aprendi a não me meter no que os outros dizem ou escrevem e respeitar o direito de cada um a fazer o que bem entende)

Portanto, refazendo a pergunta lá de cima: então, o que eu posso fazer?

Bem, posso controlar a forma pela qual escrevo.

Posso escolher as palavras que uso.

Posso procurar respeitar meu idioma.

E assim o farei doravante.

Note que não me refiro ao uso de palavras ou expressões como “doravante”, “agastar-se”, “alhures”, “época azada” e quejandas (incluída esta última). Estas, continuarei a usar porque gosto delas e por ser aquilo que a saudosa D. Eulina chamava de “baiano pernóstico”, “metido a besta” e “dado a falar difícil”. É um velho vício que cultivo há tantos anos que não creio que possa me livrar dele. Mesmo porque, como diz meu amigo João Ubaldo Ribeiro, outro baiano pernóstico metido a falar difícil (mas que, ao contrário deste escrevinhador que batuca estas pobres teclas, o faz maravilhosamente): uso as palavras porque elas existem. Tem gente que gosta, tem gente que não gosta, mas essa é minha maneira de me expressar e não creio que consiga mudá-la ainda que queira. E acontece que não quero. Mesmo porque nada vejo de errado nela.

As palavras que pretendo evitar são os estrangeirismos. Particularmente do inglês. Não mais pretendo usá-las em meus escritos exceto em citações literais do idioma a que pertencem.

Ou seja: pretendo fazer de vontade própria aquilo que o Deputado Aldo Rabelo quer obrigar a todos por força de lei.

Na verdade, por não ver necessidade de dizer em inglês o que pode ser dito em português, venho fazendo quase isso já há alguns anos. Por isso chamo “sítio” de “sítio” mesmo e não vejo razão para xingar de “email” uma pobre mensagem de correio eletrônico nem de “bus” a um mero barramento. É verdade que aqui ou ali volta e meia me escapa um “drive”, mas procuro dar preferência a “acionador de discos”. E não creio que tenha me referido ultimamente a “boot” exceto em caso de extrema necessidade. Afinal, “inicialização” ou “partida” é muito mais bonito.

Isso tudo, naturalmente, sem mencionar minha já conhecida ojeriza a aportuguesamentos estúpidos e desnecessários como “estartar”, “printar” e, Deus que me perdoe, “downlaudear”. Para que maltratar o pobre arquivo com palavra tão esdrúxula se custa tão pouco simplesmente “transferir” o coitado de uma máquina para outra... (há quem ache que usar indiscriminadamente termos em inglês e aportuguesar vocábulos como “apilodear”, “bootar” e similares é um comportamento sofisticado que denota intimidade com termos técnicos em idioma estrangeiro quando na verdade apenas evidencia ignorância do próprio idioma por desconhecer os vocábulos apropriados para substituir os estrangeiros; pense nisso)

Mas o fato é que ainda não bani completamente o inglês de meus escritos. Mesmo porque a invasão foi tão acintosa que há termos que, se eu escrever apenas o correspondente em português, corro o risco de não me fazer entender. Por exemplo: a palavra “link” tornou-se tão comum que não é fácil entender que pode ser substituída pelo equivalente exato “atalho” quando empregada para designar o “elemento de hipermídia formado por um trecho de texto em destaque ou por um elemento gráfico que, ao ser acionado... provoca a exibição de novo hiperdocumento” (definição extraída do Houaiss). Então, sempre que tenho escrito “atalho” com esta acepção, mantenho ao lado o termo “link” entre parênteses, como em: “para ir até o < http://www.bpiropo.com.br/ > Sítio do Piropo basta clicar no atalho (“link”) correspondente”.

Como este recurso aparentemente tem funcionado (pelo menos não tenho recebido reclamações) e como pretendo radicalizar o expurgo de palavras inglesas de meus textos, devo recorrer a ele cada vez mais amiúde. Então, daqui para frente vocês passarão a encontrar expressões como “gerenciador de dispositivo” seguida de um (“driver”), “computador portátil” seguido de um (“notebook”), “computador de mesa” acompanhado de um (“desktop”) e coisas que tais. Ou seja, a conduta passará a ser: traduzir sempre que possível, eventualmente acompanhando a tradução com o original em inglês em itálico entre aspas e parênteses e, somente quando não for possível por não existir vocábulo correspondente no português, aportuguesar.

Sim, porque eu me sentiria um tanto ridículo traduzindo termos como “mouse” ou “scanner” (ambos têm tradução; “mouse” é “camundongo” – e não “rato”, como pensam muitos, inclusive nossos irmãos d’além mar que caíram nesta esparrela e “scanner” é o substantivo derivado do verbo “to scan” que significa “varrer” na acepção de “examinar detidamente”). Então melhor aportuguesá-los.

Mas note que farei isto com critério, pois há método na minha loucura. Ambos os termos designam dispositivos que foram “inventados” há poucos anos e, portanto, não era de esperar que existissem palavras em português para designá-los. Para ilustrar:

Tenho um amigo que foi seminarista nos tempos em que as missas eram celebradas em latim e que muitos dos livros necessários à sua formação eram escritos naquela língua morta. Então, para facilitar o aprendizado e a memorização do idioma, ele e seus colegas decidiram usá-lo mesmo em conversas informais nas horas de estudo. E nele comentavam os acontecimentos do dia, contavam histórias e piadas (se bem que piada de seminarista não há de ser lá grande coisa seja lá em que idioma for contada). Em suma: jogavam conversa fora em latim. Pois ele me disse que a maior dificuldade que encontravam era exprimir, em latim, conceitos como “automóvel”, “metralhadora” e “avião”, nomes de coisas inventadas muito tempo depois de a língua cair em desuso.

É mais ou menos o mesmo que ocorre com nomes de dispositivos inventados na era da informática e muito compreensivelmente batizado por seus inventores em sua (deles) língua materna. Pois são termos como estes que procurarei aportuguesar. O “scanner”, portanto, passará a ser simplesmente “escâner”, como está no Houaiss. “Mouse” passará a ser “mause” e “chip” será “chipe”. E temos conversado. Não vou sequer me dar ao trabalho de acompanhá-los com o original em itálico.

Por outro lado, ao fim e ao cabo, aportuguesar significa incorporar um termo ao idioma. E me falta autoridade literária para tal. Portanto é bom tomar cuidado, especialmente na derivação de vocábulos dos termos aportuguesados. Pois, da mesma forma que uma caneta não “caneteia”, apenas escreve, e uma pistola não “pistoleia”, atira, não há razão para um escâner “escanear”, ou “escanerizar”, ou “escanibalizar” um documento. Ele simplesmente o digitaliza.

Alguns casos, naturalmente, merecerão consideração especial. Um deles corresponde às siglas e acrônimos (veja Nota 2 no final da coluna). BIOS será “BIOS” mesmo e não pretendo cair no ridículo de traduzi-lo para “SBES” (Sistema Básico de Entrada e Saída). Assim como SATA, USB, PC, RAM, ROM, CD, DVD e tantos outros. Mas UCP será UCP já que a sigla de Unidade Central de Processamento existe e é bem conhecida tanto em inglês (“CPU”) quanto em português.

Um caso muito, mas muito especial mesmo, será “Twain”, o padrão estabelecido para conectar dispositivos de digitalização de imagens, como escâneres e câmaras digitais, aos computadores e seus programas (veja Nota 3 no final da coluna). Twain não é acrônimo, como muitos pensam. Twain é um nome próprio. E, como nome próprio, não será traduzido nem aportuguesado. Portanto, Twain será Twain como Bill Gates será Bill Gates e Linus Torvalds, Linus Torvalds. O mesmo, naturalmente, ocorrerá com a linguagem de programação Assembly, um nome próprio atribuído a ela por seus desenvolvedores.

Haverá, evidentemente, casos que merecerão análise. Não sei quais serão, mas é certo que surgirão (um que acaba de me ocorrer: não tenho idéia do que fazer com a expressão “thumb drive”; aceito sugestões dos que quiserem ajudar e, de bom grado, aceitarei brincadeiras dos que acham tudo isto uma basbaquice e resolverem achincalhar o pobre velho que vos escreve; afinal não pretendo ser intolerante ou fanático em relação a meus pontos de vista). E, à medida que forem surgindo, tomarei as decisões que me parecerem mais sensatas sem procurar fugir das três diretrizes básicas que já mencionei mas não explicitei. Aqui vão elas:

1 – Quando existir um equivalente exato em português, usarei o equivalente. “Site” é “sítio”, como tem sido há anos, “clock” é “relógio” ou “freqüência de operação”, dependendo do sentido com que é usado,

2 – Quando o equivalente existir, e apenas na eventualidade de ele não ser imediatamente compreendido como tal, o escreverei seguido do original em itálico, entre aspas e parênteses (pelo menos até que os leitores se acostumem) como os já mencionados atalho (“link”), gerenciador (“drive”) e computador de mesa (“desktop”).

3 – Quando o termo corresponder a algo que foi “inventado” e batizado no exterior e, por conseguinte, não existir vocábulo em português que lhe corresponda, o aportuguesarei, porém evitando tanto quanto possível a derivação de vocábulos de termos aportuguesados. Assim serão aportuguesados mause, chipe, escâner e outros tantos.

Aí estão as regras que decidi me impor. Não sei se vou conseguir cumpri-las à risca. Mas tentarei.

Proibir, como pretende o Deputado Aldo Rabelo, não resolve. Mas se cada um de nós se conscientizar da importância do nosso idioma como patrimônio cultural do povo, entender que o processo de colonização, de imposição de valores de uma nação sobre outra, começa pelo idioma, solapando seus valores tradicionais e culturais, alterando seus usos e costumes e, tendo isso em mente, se cada um evitar o uso indiscriminado de termos estrangeiros pelo menos na linguagem escrita – ainda que não radicalizando tanto quanto eu me proponho – quem sabe alcançaremos, juntos, um efeito positivo.

Repito: tudo isto vale apenas para este pobre cronista. Não estabeleci as regras para vocês, criei-as para mim (se bem que os que decidirem respeitá-las na medida do que acharem possível prestarão um belo serviço ao idioma). Mas ninguém é obrigado a usá-las e nem ao menos a concordar com elas. Tudo o que espero é que sejam respeitadas. Ao longo da vida aprendi a respeitar os direitos alheios. E respeito igualmente tanto o do Deputado Aldo Rabelo de pretender tornar obrigatório o uso do idioma pátrio quando o das pessoas que usam, falam e escrevem frases recheadas de palavras de outro idioma. Respeito a ambos sincera e igualmente. Mas como creio que tenho o direito de escolher uma forma de expressar minhas idéias por escrito, consoante com minhas convicções culturais desde que não viole as regras do bom português nem falte com o respeito aos leitores, reivindico igual respeito. Para ser sincero, mais que respeito, peço a colaboração de vocês: tenham complacência com as “palavras difíceis” e com minha estranha mania de escrever apenas em português.

No mais: esperando ter esclarecido meu ponto de vista sobre o assunto, fecho a coluna informando que, correndo o risco de ser considerado lesivo ao patrimônio cultural brasileiro e punido na forma da lei caso o Projeto de Lei Nr. 1676 venha a ser sancionado, por amor à tradição e respeito ao uso corrente, continuarei a usar três palavras inglesas nos meus textos, sem sequer me dar ao trabalho de grafá-las em itálico, já que estas, por evidentes razões, considero incorporadas ao idioma português apesar da grafia e pronúncia exótica.

São elas: software, hardware e byte.

Feliz Ano Novo.

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Notas:

1) Língua portuguesa: poema de Olavo Bilac (cujo nome completo, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, o predestinava a ser poeta por se tratar de um alexandrino perfeito com cesura central) que declara seu amor ao idioma. Muitos conhecem sua primeira estrofe mas, infelizmente, poucos conhecem as demais. Aqui vai ele completo para sua apreciação e deleite:

Língua portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,

Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,

O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Repare como o autor respeita a língua na qual pela primeira vez ouviu a mãe chamá-lo de filho, como elogia o fato de ela poder ser ao mesmo tempo retumbante (“tuba de alto clangor... que tens o trom e o silvo da procela”) e suave (“lira singela... [que tem] o arrolo da saudade e da ternura”). Mas reconhece que por mais bela que seja, é pouco conhecida e respeitada (na época em que foi escrito o soneto, final do século XIX, era o francês a língua universal, mais tarde substituída pelo inglês) e o que fosse nela escrito, por mais belo que pudesse ser, seria praticamente ignorado (“és a um tempo esplendor e sepultura”). E, para os que não sabem o que é um “alexandrino com cesura central”: versos “alexandrinos” ou “dodecassilábicos” são aqueles de doze sílabas poéticas, muito usados para escrever sonetos (como o de Vinícius, sobre o amor: “que não seja imortal posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”; se você contar as sílabas descobrirá que são mais de doze, mas não se deve confundir “sílabas”, resultado da simples divisão silábica, com “sílabas poéticas”, a divisão que dita o ritmo da frase falada). E “cesura” é o nome que se dá à pausa, ou corte, no interior do verso, indicando suas divisões rítmicas (no exemplo a cesura fica entre as palavras “chama” e “mas”, exatamente no centro do verso, portanto é uma cesura central). Para saber mais sobre sonetos, consulte o artigo < http://www.sonetos.com.br/escrever.php > “Como escrever um soneto”, de Bernardo Trancoso. Eu recomendo.

2) Siglas e acrônimos: tanto uns quanto outros são termos formados pelas letras iniciais ou conjunto de letras iniciais de diversas palavras, usados como abreviação. Mas há uma diferença sutil entre um e outro. Em geral usa-se “acrônimo” para o caso em que a abreviação é pronunciada como uma palavra, como UNE (União Nacional de Estudantes), BIOS (“Basic Input Output System”) ou “laser” (“light amplification by stimulated emission of radiation”; sim, pouca gente sabe, mas “laser” é um acrônimo). Já se usa o termo “sigla” quando as letras são pronunciadas individualmente, como CPF (Cadastro de Pessoas Físicas), UCP (Unidade Central de Processamento) ou USB (“Universal Serial Bus”).

3) Twain: o termo, embora mesmo aos anglófonos pareça uma sigla ou acrônimo, é um nome próprio derivado da palavra inglesa “twain”, hoje quase em desuso, que significa “dois; um conjunto de dois; a marca de duas braças na sonda usada em embarcações fluviais” (tradução da acepção encontrada no dicionário inglês “American Heritage”). Quando os primeiros escâneres foram fabricados era necessário que cada dispositivo fosse fornecido com um programa capaz de digitalizar as imagens, o que era um transtorno danado principalmente porque naqueles dias não havia Internet como agora para obter os arquivos necessários e quando o programa se extraviava ou corrompia, inutilizava-se o dispositivo. Para evitar isto, um consórcio de fabricantes de escâneres se reuniu e padronizou a comunicação entre o dispositivo e o computador de tal modo que o fluxo de dados enviados pelo escâner ao digitalizar uma imagem pode ser recebido e processado por qualquer programa que obedeça ao mesmo padrão. Com isso, seja qual for o fabricante do escâner e o desenvolvedor do programa, os dois (“twain”) funcionarão em conjunto. E decidiram batizar o padrão com este nome. O problema é que atualmente a palavra é pouco usada nos EUA e poucos sabiam seu significado. E devido ao “jeitão” do termo, todos imaginaram que se tratasse de um acrônimo e passaram a indagar dos responsáveis pelo consórcio que batizou o padrão qual seria a expressão que ele abreviaria. Cansados de responder que Twain não era acrônimo, inventaram uma expressão para fornecer a quem perguntasse: “Technology Without An Interesting Name” , ou “tecnologia sem um nome interessante” que, curiosamente, é citado por algumas publicações como o “significado” de Twain. Incidentalmente: releiam a última das acepções da palavra, na definição do American Heritage Dictionary. Os barqueiros do Rio Mississipi, no Sul dos EUA, usavam um peso amarrado a uma corda para determinar a profundidade do rio. A corda era marcada em braças (unidade de comprimento aproximadamente equivalente a 1,8m). Em locais onde a profundidade estava abaixo da segunda marca (marca número dois, ou “mark twain”) a navegação era perigosa. Disso se aproveitou o genial escritor Samuel Clemens, autor de clássicos como “O príncipe e o mendigo” e “Aventuras de Huckleberry Finn” para criar seu pseudônimo literário. Assim nasceu Mark Twain.

 

B. Piropo