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B. Piropo

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16/04/2007

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A lenda da Gralha Azul >


Em minhas aulas de informática, sempre que pela primeira vez eu faço a pergunta: “O que é memória?” um dos alunos dispara imediatamente a resposta que “memória é o local onde se armazenam dados”, acompanhada daquele olhar que espelha a satisfação do dever cumprido e o orgulho de haver acertado na mosca.

Então eu finjo que não ouvi e passo a relatar a Lenda da Gralha Azul.

A Gralha Azul (Cyanocorax caeruleus) é uma bela ave. Grande (mede aproximadamente 40 cm. do bico à cauda), destaca-se facilmente da folhagem devido ao azul brilhante de suas plumas. Há algumas décadas bandos delas podiam ser encontrados nos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e no país vizinho, o Paraguai. Em 1984, por via da Lei Estadual nr. 7.957 de 21/11/84, foi declarada ave-símbolo do Paraná. É um animal bonito (veja-o na Figura 1, obtida no sítio da Gazeta de Limeira) que anda em bandos de quatro a nove elementos.

Figura 1: Gralha Azul.

Como freqüentemente ocorre na natureza, a vida se entrelaça. Algumas espécies, animais ou vegetais, dependem de outras e, enquanto o equilíbrio ambiental não é rompido, todas vicejam em harmonia. No caso da Gralha Azul, sua existência está intimamente ligada à da Araucária (Araucaria angustifolia), mais conhecida como pinheiro-do-paraná, um exemplar altivo de pinheiro de copa alta, belíssimo, que se destaca na paisagem.

Há alguns anos era uma árvore muito comum em toda a região habitada pela Gralha Azul. Hoje, incluída na longa lista de espécies ameaçadas de extinção devido ao desmatamento e a desmedida cobiça humana, que derrubou centenas de milhares de araucárias para industrializar – ou, pior, queimar – sua madeira, a árvore é rara (estima-se que restem apenas 4% dos exemplares das florestas originais). Ainda pode ser encontrada com alguma abundância na área de proteção natural (um Parque Estadual) vizinha à Campos do Jordão e, mais dificilmente, nas áreas rurais de Santa Catarina e Paraná. Um belíssimo exemplar da Araucária (obtido na Wikipedia) pode ser visto no primeiro plano da Figura 2, a primeira de um pequeno renque de poucas árvores. Compare seu tamanho com o dos veículos junto a ela e veja como é majestosa.

Figura 2: Araucaria angustifolia.

Sua ligação com a Gralha Azul é intensa, quase simbiótica. O principal alimento do pássaro é o pinhão, fruto e semente da árvore. A produção do pinhão é sazonal. Segundo o < http://pt.wikipedia.org/wiki/Gralha_azul > verbete correspondente da Wikipedia em português, “A gralha azul é o principal animal disseminador da araucária uma vez que, durante outono, quando as araucárias frutificam, bandos de gralhas laboriosamente estocam os pinhões para deles se alimentar posteriormente. Neste processo, as gralhas azuis encravam fortemente os pinhões no solo ou em troncos caídos no solo, já em processo de putrefação, ou mesmo nas partes aéreas de raízes nas mesmas condições, local propício para a formação de uma nova árvore”.

Assim, a Gralha Azul depende da araucária para se alimentar (embora de sua dieta também façam partes insetos, frutos e pequenos invertebrados) e a araucária depende da Gralha Azul para proliferar. Não é de admirar que com o quase desaparecimento da planta o pássaro também tenha entrado na lista das espécies ameaçadas.

Estes são os fatos.

Agora, a lenda.

Uma bela versão dela pode ser encontrada em < http://www.rosanevolpatto.trd.br/lendagralhaazul.html > “A Gralha Azul”, certamente muito mais bonita que a minha. Afinal, o autor é Luiz da Câmara Cascudo, mestre do folclore, orgulho nacional. Mas aqui vai um resumo da lenda que enfatiza o ponto que nos interessa:

Reza a lenda que o plantio da araucária coube à Gralha Azul como missão divina. Tão divina que os deuses as protegem enquanto entregues à sua faina fazendo disparar pela culatra, explodir ou simplesmente negar fogo as armas para elas apontadas. E que, embora elas enterrem os pinhões para deles se alimentarem mais tarde, as araucárias nascem justamente daqueles que foram enterrados e jamais encontrados pela ave, que não é capaz de se lembrar onde enterrou todos eles.

Em resumo: a Gralha Azul armazena seus pinhões em um local perfeitamente protegido pretendendo um dia recuperá-los. Note que, fazendo uma analogia entre pinhões e dados, o lugar onde os pinhões foram enterrados satisfaz à definição de memória lá de cima: “local onde se armazenam dados”.

O problema é que a Gralha Azul não consegue recuperar a maioria de seus dados, digo, pinhões, pelo simples fato de não poder identificar (ou não se lembrar de) o lugar onde os guardou.

Quer dizer: a memória (aqui usado no sentido de “capacidade de lembrar”) da Gralha Azul não é suficientemente aguçada a ponto de lhe permitir recuperar todos os pinhões guardados tão pressurosamente.

Para a araucária isso é uma bênção: são justamente esses pinhões “perdidos” que germinam e dão origem a novos e majestosos pinheiros. Mas para a Gralha Azul é um tormento: afinal, se ela guardou seus pinhões, foi para com eles saciar sua fome futura. Guardar algo para uso posterior de um modo que não permite recuperar o “guardado”, seja ele um pinhão, um dado ou o que mais for, não tem qualquer serventia.

Isto posto e contada a lenda, retomo o tema da aula e volto a perguntar: “O que é memória?”

Decorrido algum tempo, e descontando as respostas dos mais afobados (muitos) e menos inteligentes (poucos; meus alunos são brilhantes), aparece uma resposta vazada mais ou menos nos seguintes termos:

“Memória é um local ou dispositivo onde podem se armazenar dados e que permite que sejam recuperados quando deles se precisar”.

Isso, sim, é memória em “informatês”. Notou a diferença da primeira definição?

Nada como uma lenda bem contada para abrir a mente e fazê-la perceber detalhes importantes...

PS: Depois de um ano quase exato retomo a série de colunas intitulada “Computadores”. Nela, venho me dedicando a discutir com vocês a estrutura interna, a organização, os principais componentes de um computador e seu funcionamento. Começamos, há quase dois anos, discutindo bits, bytes, dados e informações. Depois, examinamos os conceitos de digitalização de grandezas, vimos como grandezas digitalizadas podem ser processadas por circuitos lógicos e como construir na prática esses circuitos usando transistores (as “portas lógicas”). Finalmente, vimos como combinar portas lógicas em circuitos úteis, desde somadores a multiplexadores e decodificadores, culminando com um modelo (funcional) de unidade de processamento de dados, ou UCP. E paramos mais ou menos por aí.

Tudo isto foi escrito em uma linguagem o mais possível despida de tecnicismos, tentando mostrar que as coisas são muito mais simples do que parecem e quem pensa diferente (ou transmite uma idéia diferente) é porque está mal-informado (ou, deliberadamente, informando mal a seus interlocutores).

A partir de hoje vamos retomar a série. Começaremos, como já perceberam todos os que chegaram até aqui, a discutir memória. Falaremos sobre a forma de representar e armazenar dados na memória, como encontrá-los ao precisarmos deles, discutiremos as principais características das memórias, seus diversos tipos, sua hierarquia, que operações podemos efetuar com elas e coisas que tais. Com o tempo chegaremos até a discutir detalhes sobre como gravar ou ler informações em uma matriz de células de memória e discutir as diferentes políticas de mapeamento usado pelas memórias cache, coisa que muita gente boa não entende até hoje.

E sempre mostrando que, por menos que pareça, quando reduzido à expressão mais simples tudo é muito fácil de entender.

Vamos, então, adiante em nossa jornada. Ela será longa, mas não temos pressa. E nada nos impedirá de, vez ou outra, interrompê-la para abordar algum tema particularmente interessante (tem um negócio chamado “surface” da Microsoft que estou com os dedos coçando para escrever sobre; informem-se e vejam se não é o tipo do tema que “dá um bom caldo”).

Mas pelo menos agora sabemos o rumo das próximas colunas.

Até lá.

 

B. Piropo