Sítio do Piropo

B. Piropo

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26/03/2007

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Na coluna anterior o colega de Fórum Felipx postou um comentário com o seguinte teor:

“Acho que agora, quando você começa a demonstrar as ocorrências do número Phi na natureza, isso ressalta a impressão ‘quase sobrenatural’ desses fatos. Afinal, não há quem não se pergunte: como pode ser isso? Se há um padrão que se repete, então deveria haver uma lei que o descrevesse, tal como a lei da gravidade. Estou certo? Acho que cabe, nos próximos artigos, falar um pouco dessas divagações ‘filosóficas’ que o fenômeno desperta”.

A inquietação do Felipx é compreensível. Afinal, por que certos números parecem “especiais”? E por que eles surgem onde menos se espera? Que razões há para isso? Que lei da natureza, se é que há alguma, justifica isso? Em suma: como pode?

Querem exemplos? Aqui vão alguns números que eu considero especiais.

O número “1” é, sem dúvida, um número especial. Ele representa a unidade. De acordo com a teoria dos conjuntos, ele representa o conjunto de todos os conjuntos unitários. O fato do número 1 ser especial é tão óbvio que nem vou me dar ao trabalho de me estender muito para justificá-lo. O número 1 é especial e temos conversado.

O mesmo ocorre com o zero. Que, tecnicamente, nem sequer é um número. Ele representa um conjunto “vazio”, ou seja, um conjunto sem qualquer elemento. Nada. Neca. Nulo. Néris de pitibiriba (alguém aí já ouviu esta expressão?). Rien de tout. Coisa alguma. Bulhufas. Bôrra nenhuma. Rosca. Zero.

Não obstante o “número” zero foi uma das grandes “sacadas” da história da matemática e sua natureza é tão estranha (não para nós, que já estamos acostumados a ele, mas pense em um mundo sem o “zero” e tente concebê-lo, literalmente, do nada...). Foi “inventado” pelos chineses no século V da era cristã, adotado quatrocentos anos mais tarde pelos Hindus, que o repassaram aos árabes, através dos quais acabou chegando ao ocidente pelas mãos, vejam vocês, de Leonardo, o filho do embaixador de Pisa entre os mouros que dominavam o norte da África, Bonacci. Que, por ter nascido em Pisa, era conhecido por Leonardo Pisano e, sendo filho de Bonacci, também era chamado de Fibonacci. Sim, o nosso velho conhecido, responsável pela introdução do sistema de numeração “arábico” no ocidente e “descobridor” da seqüência que leva seu nome e que gerou o número Fi.

Mas não é por isso que o zero é especial. O que o torna especial é o fato de que sem ele é impossível usar qualquer sistema numérico posicional já que o zero serve para marcar uma “casa” vazia (por exemplo, no decimal 20.304 as “casas” do milhar e da dezena estão vazias; como exprimir isso sem o conceito de “zero”?). Portanto o zero, que nem mesmo número é, pode sem dúvida ser considerado um número especial.

Mas há outros números especiais. Tão especiais que são conhecidos internacionalmente por seus símbolos. Temos lidado com um deles há tantas colunas, o Fi, que nem vou me dar ao trabalho de mencioná-lo. Mas que tal o “Pi”? E o “e”? Ou o “i”?

Pi, o mais “manjado” deles, representa a relação entre o comprimento da circunferência e seu diâmetro. Como seu primo Fi, é um irracional (ou seja, não pode ser representado pela relação, ou “razão”, entre dois números inteiros). Vale aproximadamente 3,14159265... (essas reticências indicam que seu número de casas decimais é infinito e não se repetem, como todo número irracional). O Pi aparece em centenas, talvez milhares de fórmulas, muitas das quais nada têm a ver com a razão entre a circunferência e seu diâmetro. E eu não sei explicar a razão disso...

Já o número “e” é menos conhecido. Foi introduzido por John Napier, o criador dos logaritmos neperianos, e é justamente a base destes logaritmos. Não vou me alongar na teoria dos logaritmos nem explicar para que servem (resumidamente: servem – ou serviam, antes do advento das máquinas de calcular eletrônicas – para simplificar cálculos substituindo multiplicações por somas, divisões por subtrações e assim por diante). O número “e” surgiu do desejo de Napier de encontrar uma base cujas potências não se afastassem muito umas das outras, dando certa “regularidade” às “taboas de logaritmos”. Encurtando uma história longa: “e”, como o Pi, é um número irracional e pode ser definido como o limite da sucessão (1+1/N)^N (por extenso: “um mais um sobre N, tudo isso elevado a N) quando N tende ao infinito. Seu valor aproximado é 2,718281828459... Também ele aparece em um mundo de fórmulas matemáticas, muitas das quais nada têm a ver com os logaritmos neperianos. E eu também não sei explicar por que razão.

O número “i”, como sabem todos os que têm alguma noção dos números complexos, é a chamada “unidade imaginária”, cujo valor teórico é “raiz quadrada de menos um”. Ou seja: i^2=-1 (novamente, por extenso: “i ao quadrado é igual a menos um”). Ora, como o quadrado de um número positivo é positivo e o quadrado de um número negativo também é positivo, teoricamente um quadrado negativo não existe, é coisa que só faz sentido em nossa imaginação. Por isso “i” é considerada a unidade imaginária e usado para representar os chamados “números complexos”, todos da forma “a + b.i”, onde “a” é a “parte real” e o produto b.i é a “parte imaginária”. Também não cabe aqui uma longa divagação sobre números complexos. Cabe apenas afirmar que eles existem, são úteis e largamente usados principalmente nos cálculos de circuitos elétricos. E, levando-se em conta que representa um quadrado negativo, não resta dúvida que “i” também é um número muito especial.

Muito bem: falamos do “1”, do “0”, do “Pi”, do “e” e do “i”, explicando a origem de cada um deles e os considerando especiais. Mas o que têm eles a ver uns com os outros? O que os une? Você seria capaz de descobrir alguma relação entre eles? E, se esta relação existir, qual seria o motivo de sua existência? O que seria capaz de unir uma relação entre o comprimento da circunferência e seu diâmetro, o limite de uma estranha sucessão, um quadrado negativo imaginário e os valores da unidade e do zero?

Você consegue descobrir alguma relação entre esses números especiais?

Pois Euler descobriu (Leonhard Euler foi um dos mais importantes matemáticos da história da humanidade; para saber mais sobre ele consulte a Wikipedia < http://en.wikipedia.org/wiki/Euler > em inglês ou < http://pt.wikipedia.org/wiki/Leonhard_Euler > em português). Em 1748 Euler publicou aquilo que veio a se tornar conhecido como “relação de Euler”. Aqui está ela:

Figura 1: Relação de Euler.

(Novamente, por extenso: “a soma de ‘e’ elevado a ‘i’ vezes Pi com um é igual a zero).

Faz sentido para você?

Por que cargas d’água esses cinco números tão especiais apresentam entre si uma relação tão bizarra?

Você explica?

Eu não.

E por mais que eu divague sobre o assunto, jamais encontrarei uma razão (no sentido de “justificativa”, não no de “relação”) para tal fato. Portanto, meu caro Felipx, sobrenatural ou não, fruto de alguma insondável lei da natureza ou não, essa relação existe e eu não sei explicá-la. Nem sei como pode ser isso.

Simplesmente aceito sua existência e sigo adiante.

Mas já no que toca à ocorrência do número Fi no reino vegetal, se eu não consigo justificar, pelo menos consigo explicá-la. E, como vocês verão, a explicação é bastante razoável. Tem a ver com a tendência da natureza de otimizar tudo.

Por exemplo: por que uma gota de água é esférica?

Se você pensou em contestar, afirmando que uma gota de água definitivamente não é esférica e tem aquele formato ligeiramente cônico que se convencionou usar para lágrimas e gotas de chuva, pense duas vezes e lembre-se que eu não me refiro a uma gota de água submetida a forças externas, como a que escorre sobre uma superfície ou que cai na atmosfera e que se deformam por ação dessas forças (gravidade, reações do ar e da superfície, sua própria viscosidade cinemática). Refiro-me a uma gota de água não submetida a qualquer ação externa. Por exemplo: aquela que se forma em um ambiente sem gravidade como o interior de uma nave ou laboratório espacial onde, sem sombra de dúvida, acredite: ela é perfeitamente esférica.

Uma gota de água é esférica porque, dentre todas as formas possíveis para um corpo sólido, a esfera é aquela que apresenta a menor área (superfície externa) para um dado volume. E a água é o líquido com maior tensão superficial conhecido. A tensão superficial é uma força que tende a fazer com que as moléculas situadas na superfície do líquido se atraiam e funcionem como se fosse uma película (é devido à tensão superficial da água que alguns insetos conseguem caminhar sobre ela). Ora, quanto maior a superfície exposta, mais energia é consumida pela tensão superficial. Quando não há nenhuma outra força agindo sobre a gota de água, as moléculas tendem a se arranjar formando um sólido que minimiza o consumo de energia despendido para mantê-las juntas. E isso ocorre quando a superfície externa é a menor possível.

Portanto não há mistério algum: uma gota de água é esférica porque esta é a forma que a natureza encontrou para economizar energia. É simples assim. E a natureza é mestra em otimização.

Agora, voltemos às plantas.

Já ouviu falar em “meristema apical”? Se não for botânico, provavelmente não. E como isto não é um curso de botânica, vamos tentar explicar do que se trata da forma mais sucinta possível.

“Apical” tem a ver com “ápice”, ou ponta. O meristema apical é portanto aquele que se encontra no ápice, ou ponta, de caules ou raízes de plantas. E meristema é um tipo de célula vegetal com características embrionárias (colocando a coisa em sua expressão mais simples, meristemas são uma espécie de “célula tronco” dos vegetais: uma célula que pode gerar qualquer tipo de tecido dependendo de onde se dá sua multiplicação). São elas as responsáveis pelo crescimento das plantas: como estão no ápice e se reproduzem por divisão, dão origem a novas células que formam os tecidos que por sua vez fazem as plantas crescerem.

Um meristema pode dar origem a um galho, a um ramo ou a uma flor. Um galho dará origem a diversos outros galhos e ramos. Um ramo dará origem a diversas folhas. E uma flor dará origem a diversas pétalas (a corola) cercando uma porção circular onde se distribuem as sementes. Veja o exemplo clássico da flor do girassol na Figura 2 (obtida na Wikipedia).

Figura 2: campo de girassóis.

Como a natureza “arruma” as pétalas das flores? E os ramos? Como distribui as folhas nos ramos e as sementes na porção circular no interior da corola?

Em princípio, conhecido o amor pela otimização evidenciado pela natureza, ela deverá “arrumar” as pétalas, galhos, ramos folhas e sementes usando algum critério que leve à otimização de recursos.

Mas de que recursos? Ora, daqueles que a planta necessita para se desenvolver. Que, além dos nutrientes capturados do solo pelo sistema radicular (o conjunto de raízes) são constituídos por dois componentes essenciais: luz e água. Que, em princípio, vêm “de cima” e são absorvidos pelas folhas.

Então vamos imaginar um ramo de uma planta qualquer que cresça verticalmente. Imaginemos ainda que deste ramo tenha brotado uma folha. A situação será, então, aquela representada esquematicamente pela Figura 3. O ramo continuará a crescer verticalmente e, acima da única folha, brotarão outras. Em que posição (mais especificamente, em que ângulo com a primeira) esta folha e as demais, acima dela, deverão brotar para maximizar a utilização dos recursos acima mencionados?

Figura 3: Ramo com uma folha.

Digamos que a natureza demonstre mais amor à simetria que à otimização de recursos e escolha um ângulo que parece natural: 180º. As folhas brotarão então umas exatamente acima das outras em lados opostos do caule, como na Figura 4.

Figura 4: Folhas opostas (180º).

Que lhe parece? Já viu algum caule assim? Duvido. Definitivamente não é um bom arranjo. Como também não seriam bons arranjos aqueles nos quais as folhas brotam em ângulos divisores inteiros de 360º, como por exemplo 120º ou 90º (veja o resultado na Figura 5).

Figura 5: Folhas em ângulos de 120º e 90º.

Certamente você já percebeu porque os arranjos acima, embora regulares e simétricos, estão longe de serem os ideais: porque como os recursos importantes, luz e água (da chuva, naturalmente), vêm de cima, estes arranjos fazem com que gerações sucessivas de folhas nasçam exatamente acima de folhas das gerações anteriores, fazendo sombra e roubando as preciosas gotas de chuva de que elas precisam.

O arranjo ideal seria aquele em que as folhas brotem de tal forma que o ângulo que formam com aquelas que estão imediatamente abaixo minimize a possibilidade de que uma folha nasça exatamente sobre a outra. Este, do ponto de vista do crescimento das folhas, seria o “ângulo ótimo” no que toca à maximização do aproveitamento de recursos. Será que este ângulo existe? E, se existe, pode-se demonstrar qual seja?

A resposta para ambas as perguntas é afirmativa: o ângulo existe e, em 1993 dois matemáticos franceses, Douady e Couder, demonstraram matematicamente (tem gente que demonstra cada coisa...) usando apenas conhecimentos da dinâmica simples (veja em < http://www.spirasolaris.ca/sbb4d2b.html > “Spira Solaris Architas Mirabilis”) que este ângulo é 222º 29’ 34”. O ângulo mostrado na Figura 6.

Figura 6: Ângulo “ótimo”.

Se, a cada geração sucessiva, uma folha brotar formando este ângulo com a que fica imediatamente abaixo dela, a probabilidade de que uma folha venha a assumir uma posição situada exatamente acima de outra é mínima e o aproveitamento de recursos naturais é máximo. O ramo, após o nascimento da sexta folha, ficaria com o aspecto mostrado esquematicamente na Figura 7.

Figura 7: folhas nascendo no “ângulo ótimo”.

Reparem: cada nova folha é gerada pelo meristema fazendo um ângulo de 222º 29’ 34” com a que fica situada imediatamente abaixo. Fica um arranjo meio “gauche”, assimétrico, esquisitão, aparentemente formado sem obedecer a qualquer regra. Mas olhe com mais atenção para a parte de baixo da figura, onde aparece a vista de topo do ramo. Veja como as folhas se situam “desalinhadas”. E pense: quantas gerações a mais de folhas terão que nascer até que uma delas, qualquer uma, se situe exatamente acima de qualquer outra. Percebeu? Mantendo sempre este ângulo aparentemente esdrúxulo com a folha que a antecede, o ramo que cresce na vertical conseguirá fazer com que suas folhas capturem cada raio de sol e cada gota de chuva que cai do céu.

Interessante, não?

Mas, até aqui, isso nada mais foi que um exercício teórico: messieurs Douady e Couder demonstraram que existe um ângulo, o ângulo ótimo, que caso seja obedecido pelas sucessivas gerações de folhas que brotam em um ramo vertical, otimiza a utilização de recursos. Mas será que a mãe natureza sabe disso? Ou, melhor dizendo: será que este ângulo é obedecido por ela?

 
Figuras 8 e 9: exemplar de girassol e suas folhas.

Bem, veja você mesmo nas figuras 8 e 9, ambas obtidas no < http://www.mcs.surrey.ac.uk/Personal/R.Knott/Fibonacci/fibnat.html > sítio do Prof. Ron Knott. São duas vistas, lateral e de topo, da mesma planta, um exemplar de girassol que ainda não floresceu. Veja, na Figura 8, as folhas numeradas da mais jovem para a mais velha e na Figura 9 a mesma planta acima de um gráfico que mostra os ângulos formados pelas folhas geradas sucessivamente. Se não é idêntico, é bastante próximo do “ângulo ótimo” de 222º 29’ 34”.

Portanto, a natureza obedece, sim, à regra do ângulo ótimo.

Mas esta não era uma coluna sobre o número Fi e as plantas? Falamos sobre botânica, sobre otimização de recursos, sobre a Relação de Euler, enfim, falamos sobre tudo menos sobre o número Fi.

Será que Piropo pirou?

Talvez não. Vamos fazer umas contas...

Veja lá: uma volta completa mede exatos 360º.

O ângulo ótimo é menor que ela, portanto é uma fração da volta completa.

Este ângulo, que garante maximização do uso de recursos e por isso mesmo é empregado pela natureza para a formação das folhas em caules verticais (e para outras coisas, como veremos na próxima coluna), é de 222º 29’ 34” que, convertido para decimal, resulta em 222,492º (na verdade, é um irracional do qual estão representadas apenas as primeiras três casas decimais).

Então, temos dois ângulos: 360º e 222,492º.

Divida um pelo outro e prepare-se uma surpresa...

 

B. Piropo