< Coluna em Fórum PCs >
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04/09/2006
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< Analytical Engine VII: O que deu errado > |
Agora que já temos uma idéia do que ela poderia fazer, vejamos que aspecto teria essa famosa Máquina Analítica. Uma tarefa difícil, já que como sabemos, embora Charles Babbage tenha dedicado os últimos trinta anos de sua vida à sua fabricação, jamais chegou a concluí-la. E, tanto quanto eu saiba, embora tenham sido feito planos de montar um exemplar completo de acordo com os desenhos originais de Babbage (como foi feito com a Máquina Diferencial), nenhum modelo da Máquina Analítica foi efetivamente terminado (não obstante, existem fotos daquilo que se supõe ser uma parte da Máquina Analítica e sobre as quais falaremos adiante). Portanto, para se ter uma idéia do real aspecto do engenho, há que se confiar nas descrições de Babbage e, sobretudo, nos trabalhos de seu filho, Henry Prevost (o H.P. Babbage citado na coluna anterior), que tentou terminar o trabalho do pai. Para quem está acostumado com os computadores modernos, alguns dos quais cabem no bolso da camisa, o tamanho da Máquina Analítica há de assustar: ela mediria trinta metros de comprimento por dez de largura e seria acionada por uma máquina a vapor (na época não havia motores elétricos industriais). Mas não impressionaria a quem conheceu os (relativamente) modernos “mainframes”, máquinas de grande porte que ocupam vastas salas refrigeradas. E muito menos quem já ouviu falar do UNIVAC (Figura 1, obtida na página da < http://www.palosverdes.com/lasthurrah/UNIVAC-I.html > “Last Hurrah Conference”), acrônimo de Universal Automatic Computer, o primeiro computador comercial da era “moderna” que, com suas 5.200 válvulas (no início dos anos 50 do século passado, quando ele entrou em fabricação, os transistores tinham acabado de ser inventados e mal haviam entrado em produção industrial), pesava 13 toneladas e apenas sua UCP e memória ocupavam 35 metros quadrados de piso. Tinha uma memória de 12 KB (sim, quilobytes) e rodava a fabulosos 2,25 KHz (isso mesmo, quilohertz), custando a bagatela de 159 mil dólares americanos (considere a inflação nesses últimos cinqüenta anos e isso chega a mais de milhão de dólares).
Portanto, levando em conta que passaram-se mais de cem anos entre a concepção da Máquina Analítica, mecânica e movida a vapor, e a fabricação do UNIVAC, eletrônico e alimentado a eletricidade, podemos considerar que a máquina de Babbage era um delicado trabalho de miniatura... O primeiro computador A Máquina Analítica é considerada pela maioria dos especialistas como o primeiro computador jamais concebido pelo homem. Vejamos porque. Usava cartões perfurados como dispositivos de entrada de programas e dados. Empregava componentes separados para efetuar as operações aritméticas (o “mill”, que cumpre o papel da Unidade Lógica e Aritmética, componente essencial das atuais Unidades Centrais de Processamento, ou UCPs) e para armazenamento de dados e instruções (a “store”, que cumpre o papel da Memória Principal). Podia recorrer a três dispositivos de saída: uma impressora numérica, um dispositivo para desenhar curvas (aquilo que hoje chamamos de “plotter”) e um sino (agora você sabe de onde veio aquele irritante “bip” dos PCs). E trazia incorporada sua própria perfuratriz de cartões, que poderia neles perfurar resultados numéricos de operações realizadas pela máquina para serem usados posteriormente como entrada de novas operações ou dados. Executava operações de ponto flutuante usando o sistema numérico decimal e sua memória (a “store”) podia armazenar mil números de cinqüenta algarismos cada (compare com a do UNIVAC, concebido um século depois). Se você se interessou em ler o artigo de Manabrea citado na coluna anterior “Analytical Engine” e chegou aos comentários de Ada Lovelace, sabe que a Máquina Analítica usava uma linguagem de programação análoga ao Assembly, que incorporava as noções de cálculos repetitivos (“loops”) e saltos condicionais (“branches”), os mesmos conceitos básicos de qualquer linguagem de programação moderna. Mas será que isto bastava para fazer dela um computador? Não haveria uma forma, digamos, mais “científica”, de comprová-lo? Em 1936 Alan Turing, um dos grandes gênios da história da informática, definiu o conceito de “Máquina de Turing”. Trata-se apenas de um conceito, um dispositivo básico de manipulação de símbolos, mas que pode ser adaptado para simular a lógica de qualquer computador efetivamente existente. Ou seja: qualquer computador é uma máquina de Turing e, para ser considerado um computador, o dispositivo precisa de satisfazer as condições que fazem dele uma máquina de Turing. Se você deseja informações mais detalhadas sobre a conceitualização da máquina de Turing pode recorrer ao artigo correspondente da < http://en.wikipedia.org/wiki/Turing_machine > Wikipedia: informalmente, uma “Máquina de Turing” é aquela capaz de efetuar qualquer tarefa computacional, não importando a eficiência com que o consegue; formalmente, conforme a definição de Booth exposta na Wikipedia, “uma máquina de Turing é essencialmente uma máquina seqüencial de estado finito que tem a habilidade de se comunicar com um reservatório externo de informações”. Por qualquer critério – e nisso os especialistas concordam unanimemente – a Máquina Analítica foi o primeiro dispositivo idealizado pelo homem a cumprir as condições que o enquadram como uma máquina de Turing. E isto um século antes de Alan Turing conceituar sua máquina. Portanto, não resta dúvida: tivesse sido concluída, a Máquina Analítica teria sido o primeiro computador digno deste nome em toda a história da humanidade. E o fato de não ter sido concluída, como veremos adiante, em nada empana o brilho da invenção de Babbage. Pois logo veremos que, neste caso em particular, a não conclusão foi devida a fatores que nada tinham com a concepção do projeto ou seu funcionamento nem a problemas tecnológicos. Portanto, Charles Babbage pode não ter sido o fabricante do primeiro computador, mas indiscutível e comprovadamente foi o inventor da primeira máquina digna deste nome. O aspecto da máquina Mas, afinal, com que se parecia a Máquina Analítica? Bem, como já mencionado, uma pesquisa por imagens na Internet leva a fotos (diversas) classificadas como sendo da “Máquina Analítica” de Babbage. No entanto nenhuma delas menciona especificamente o local onde foi tirada e muitas são de fato reproduções de fotos da Máquina Diferencial, citadas erroneamente como Máquina Analítica (afinal, para os leigos, ambas eram “máquinas de Babbage”). Em uma das fotos do que efetivamente parece ser a Máquina Analítica há uma vaga menção ao Science Museum de Londres, onde está em exibição o modelo funcional da Máquina Diferencial. Mas, como veremos adiante, embora a mesma equipe que montou a Máquina Diferencial tivesse traçado planos para montar igualmente a Máquina Analítica, tanto quanto me é dado conhecer o projeto jamais foi levado adiante (ou, pelo menos, jamais foi concluído). Seja lá como for, e apenas para que se tenha uma idéia da aparência do engenho, a Figura 2 exibe duas fotos do que seriam as duas máquinas de Babbage. A menor, à esquerda e em preto e branco, obtida no < http://pboursin.club.fr/index.htm > sítio de Philippe Boursin, mostra a nossa velha conhecida Máquina Diferencial, exibida no Science Museum de Londres. Já a maior, em cores, à direita, obtida em < http://ei.cs.vt.edu/~history/DiffEng2.GIF > “The History of Computing”, mostra uma foto daquilo que seria a Máquina Analítica. Compare-as, tanto uma com a outra quanto ambas com as fotos da Máquina Diferencial exibidas na coluna “A Máquina Diferencial” e perceba que as máquinas mostradas na Figura 2 são semelhantes mas não iguais. E o detalhe das alavancas e dos cames mostrados no primeiro plano da foto maior coincidem exatamente com o esquema exibido em um dos trabalhos de Henry Prevost Babbage sobre a Máquina Analítica. Portanto, aparentemente, a foto maior exibe efetivamente uma parte desta última máquina, embora eu não tenha conseguido determinar o local onde ela se encontra nem a época de sua fabricação. Se algum leitor mais bem informado souber detalhes eu agradeceria a colaboração.
As máquinas seriam viáveis? Os que acompanham esta série desde a primeira coluna sabem como foram tristes os últimos anos de vida de Charles Babbage, exposto à execração pública, ridicularizado pela imprensa, considerado pela sociedade como um velho excêntrico dedicado à realização de um sonho impossível, a montagem de uma Máquina Analítica que, de acordo com a crença então corrente, jamais poderia funcionar. De fato, durante muitos anos acreditou-se que, embora indiscutivelmente correto do ponto de vista lógico, o projeto da Máquina Analítica era efetivamente inexeqüível nos anos em que Babbage tentou conclui-lo em virtude de inexistirem na época os recursos tecnológicos necessários à sua fabricação. Seria isso verdade? Dos oito filhos de Babbage, apenas três sobreviveram a ele: Benjamim Herschel, que morreu na Austrália em 1878, Dugald Bromheald, falecido em Southampton em 1901 e, o mais jovem, Henry Prevost, que viveu até 1918. Na ocasião da morte do pai em 1871, Henry Prevost vivia na Índia, onde serviu como oficial do Exército Britânico até 1874, quando retornou à Inglaterra e herdou, por testamento, as peças e a montagem parcial da Analytical Engine. Interessado pelo invento do pai, no qual havia trabalhado intermitentemente vinte anos antes, tentou concluir a montagem com as peças que herdou. Mas não foi bem sucedido e, em 1879, dando o projeto por impossível devido à falta de algumas peças essenciais, desistiu e enviou o material remanescente para a fundição visando aproveitar o metal. Entrementes, sem que Henry Babbage soubesse, um certo Mr. Wilkinson, herdeiro e sucessor de Clement, antigo contratado de Charles Babbage que havia recebido do Governo Britânico a missão de tentar terminar o projeto da Máquina Diferencial abandonado por Babbage em 1833, deu o mesmo fim às engrenagens da Máquina Diferencial que ainda permaneciam nas oficinas de Clement. Sobre o assunto declarou Henry Babbage em trabalho publicado em 1910: “Soubera disso em tempo hábil, eu poderia ter preservado as (peças) que tinha, pois eu ainda mantenho a opinião... que o componente de cálculos da Máquina Diferencial poderia ser montado naquela ocasião caso o Governo tivesse aplicado nela, digamos, mais quinhentas libras esterlinas”. Nesse meio tempo aumentou o interesse de Henry Babbage pelo projeto do pai. E, a partir de 1880, dedicou-se ao estudo dos escritos, planos e desenhos deixados pelo velho Babbage e concluiu que poderia, ao menos, tentar a montagem do “mill”, o componente principal da Máquina analítica, aquele destinado a efetuar os cálculos e que, segundo ele, “teria sozinho alguma utilidade prática nas mãos de um operador habilidoso”. Começou praticamente do zero, fundindo as placas externas em 1880. Em janeiro de 1888 conseguiu montar uma máquina capaz de calcular “do primeiro ao 44º múltiplo do número ‘Pi’ com vinte e nove casas decimais, cálculo que poderia ser prolongado indefinidamente”. Infelizmente, ao calcular o 32º múltiplo houve uma falha no sistema de “vai um” (a forma de incrementar a “casa” da esquerda quando a soma de dois algarismos excede a dez, o dispositivo mais delicado da máquina), o que resultou em um dígito incorreto, resultado que desencorajou Henry a prosseguir. Alguns anos depois ele doou todo o acervo ao South Kensington Museum. Mas o filho, ao que parece, era tão teimoso quanto o pai. Tanto assim que continuou remoendo o problema e quase vinte anos depois, em 1906, “percebeu o que estava errado e como remediar”. Retomou então o trabalho e, em suas próprias palavras: “na fábrica do Sr. R. W. Munro, em Tottenham, sob minha supervisão direta, o trabalho foi completado e o dispositivo foi solicitado a imprimir em papel o resultado dos cálculos”. Uma imagem de parte da máquina montada por Henry Prevost Babbage, um modelo perfeitamente funcional do “mill” fabricado em zinco, é mostrada na Figura 3, juntamente com uma reprodução do primeiro documento impresso por ela, os 23 primeiros múltiplos do número “Pi” com 29 algarismos significativos (ambas obtidas no < http://www.fourmilab.ch/babbage/hpb1910.html > sítio do Fourmilab). Como curiosidade, note-se que segundo a errata publicada no próprio trabalho de Henry Babbage, o valor de “Pi” fornecido à máquina (ou seja, o valor de entrada) apresentava um erro na 15ª casa decimal, erro esse que se propagou por todos os cálculos. Além disso, embora calculando corretamente, o mecanismo de impressão imprimiu um algarismo incorreto nos múltiplos de ordem 8, 9 e 11 (assinalados em amarelo claro no fac-símile exibido na Figura 3).
Mas esta não foi a única tentativa de terminar os projetos de Babbage. Vejamos o que diz o sítio da University of Exeter especialmente dedicado a Charles Babbage, “The Babbage Pages”. “Freqüentemente se pergunta se as máquinas de Babbage teriam funcionado caso ele as tivesse fabricado. Esta pode não ser uma pergunta inteiramente sem sentido: muita coisa pode dar errado ao longo de um projeto como aquele enquanto, por outro lado, novas soluções podem ser encontradas para quaisquer problemas que surjam durante a fabricação. Entretanto a pergunta pode ser enunciada de forma ligeiramente diferente: teria sido tecnicamente viável para, digamos, Babbage e Whitworth, fabricar uma Máquina Analítica durante os anos 1850? “Há vinte e cinco anos (o texto é datado de 01/10/1996), após cuidadosas pesquisas, Anthony Hyman e o falecido Maurice Trask concluíram que a fabricação das máquinas de Babbage teria sido inteiramente possível. Os problemas foram de ordem financeira e organizacional, mas tecnicamente o projeto em si mesmo era perfeitamente factível. Eles propuseram um plano: primeiro, fabricar a DE2 (a segunda Máquina Diferencial). Depois, se desejado, DE1 – ou uma versão da DE2 com plataformas móveis. E, finalmente, uma versão completa da Máquina Analítica, provavelmente conforme as plantas 28A. “Depois de muito trabalho envolvendo muita gente, particularmente o Dr. Allan Bromley, uma equipe do Science Museum liderada por Doron Swade fabricou uma versão completa da DE2. Foi um sucesso triunfante, vingando o trabalho técnico de Babbage. Entretanto, a tarefa muito mais ambiciosa de fabricar uma Máquina analítica permanece para ser retomada” No original: It has often been asked whether Babbage's Engines would have worked if they had been built. This may not be an entirely meaningful question: much can go wrong during such a project, while on the other hand new solutions may be found to any problems which might appear during construction. However the question can be put slightly differently: would it have been technically feasible for, say, Babbage and Whitworth to construct an Analytical Engine during the 1850s? Twenty five years ago, after a careful investigation, Anthony Hyman and the late Maurice Trask formed the opinion that construction of Babbage's Engines would have been quite possible. The problems were financial and organizational, but technically the project in itself was perfectly feasible. They proposed a plan. :first construct DE2 (the Second Difference Engine; then, if wished DE1, or a version of DE2 with `travelling platforms'; and finally a complete Analytical Engine, probably following plan 28A. After much work by many people, and particularly by Dr. Allan Bromley, a team at the Science Museum led by Doron Swade built a complete version of DE2. It was a triumphant success, vindicating Babbage's technical work. However, the far more ambitious task of constructing an Analytical Engine remains to be undertaken. Incidentalmente: a Máquina Diferencial mencionada na citação acima é aquela nossa velha conhecida do London Science Museum, cujas fotos foram exibidas na coluna “A Máquina Diferencial”. Portanto, a Máquina Analítica não era um sonho irrealizável, uma quimera que só poderia existir na imaginação de um velho obcecado por sua invenção. Pelo contrário: tanto a fabricação, há mais de um século, de seu componente principal (inteiramente funcional) por Henry Prevost Babbage quanto a montagem da Máquina Diferencial quase cem anos depois pela equipe de Doron Swade provam que a fabricação era absolutamente viável mesmo com a tecnologia da época. Mas se o projeto era factível, então por que nenhuma das máquinas jamais foi concluída? Um breve histórico Charles Babbage concebeu sua primeira máquina, a Máquina Diferencial, no final dos anos 1810. No início da década seguinte conseguiu financiamento do Governo Britânico e iniciou sua fabricação em 1823, um projeto que deveria durar três anos. Uma década adiante, em 1833, já havendo consumido muito mais que os recursos iniciais e ainda longe da conclusão, Babbage percebeu que com algumas alterações poderia transformar sua Máquina Diferencial, de concepção limitada mas com uma utilidade prática imediata (a impressão de tabelas náuticas e de logaritmos), em sua Máquina Analítica, muitíssimo mais poderosa e genérica, mas sem uma aplicação prática específica. Em dezembro de 1834, necessitando de recursos para continuar sua montagem, encaminhou ao Governo Britânico um pedido de recursos adicionais. Para (acreditava ele) reforçar sua argumentação, mencionou a possibilidade de fabricar “uma máquina inteiramente nova, possuindo poderes muito mais extensos” (ele aludia a sua Máquina Analítica). O pedido foi negado. Babbage então abandonou o projeto da Máquina Diferencial (cuja conclusão da montagem foi deixada à cargo de Clement, que havia sido contratado pelo Governo para auxiliar Babbage) e dedicou-se integralmente ao desenvolvimento de sua Máquina Analítica, tendo inclusive abandonado sua Cátedra Lucasiana em Cambridge por esta razão. Em 1840, retornando de sua famosa viagem à Turim (onde conheceu Menabrea), voltou a solicitar recursos do Governo e recebeu nova negativa. Convencido que não conseguiria financiamento para sua Máquina Analítica, em 1846 retomou os planos de sua Máquina Diferencial e aperfeiçoou-os, projetando aquilo que seria conhecido como “Máquina Diferencial 2” (aquela que foi efetivamente montada em 1991 pela equipe de Doron Swade e permanece no British Museum). Nesta altura da vida, suas idas e vindas já o haviam levado ao descrédito. Um descrédito mútuo, diga-se de passagem: não apenas a sociedade britânica de então já passara a considerá-lo um velhote excêntrico como também sua opinião sobre esta sociedade não era das mais abonadoras. Nessa ocasião ele publicou o seguinte: “Proponha ao um cidadão inglês qualquer princípio ou instrumento, ainda que admirável, e você observará que todo o esforço da mente inglesa se voltará a procurar nele por uma dificuldade, um defeito ou uma impossibilidade. Se você lhe falar sobre uma máquina para descascar batatas, ele lhe dirá que isto é impossível. Se você descascar com ela uma batata diante de seus olhos, ele declarará que a máquina é inútil, pois não serve para fatiar abacaxis”. Também é desta época uma outra conhecida citação sua, na qual ele expressa sua irritação com a dificuldade demonstrada pelas pessoas “comuns” para entender o objetivo e o funcionamento real de sua máquina. Dizia ele: “Já me perguntaram duas vezes: ‘Mr. Babbage, se entrarmos (na Máquina Diferencial) com os números errados, será que ela informará o resultado correto?’ Eu admito que não consigo entender o tipo de confusão de idéias que pode levar alguém a fazer tal pergunta”. Sozinho, em um estado de espírito compreensivelmente depressivo, voltou novamente seus esforços para a Máquina Analítica em 1856, já sexagenário (havia quem o achasse velho demais para tal missão; quanto a mim, seja por interesse próprio, seja por senilidade mesmo, acho que ele estava na plenitude de suas potencialidades J). E, em 1864, escreveu: “se eu sobreviver ainda mais alguns anos, a Máquina Analítica existirá” (... if I survive some few years longer, the Analytical Engine will exist...). É mais ou menos desta época o triste comentário de Lord Moulton citado no final da terceira coluna desta série, “A Epopéia”. Um comentário que revela a opinião errônea e preconceituosa que perpassava pela sociedade britânica sobre Babbage e seu projeto ao prosseguir nos seguintes termos: “Depois de alguns minutos de conversa (durante a vista de Moulton à casa e oficinas de Babbage) nós passamos à próxima sala de trabalho onde ele me mostrou alguns dos elementos da Máquina Analítica (pelo contexto, percebe-se que Moulton referia-se à Máquina Diferencial, não à Analítica) e explicou seu funcionamento. Eu perguntei se poderia vê-la. Ele respondeu: ‘Eu jamais a terminei porque me sobreveio a idéia de fazer a mesma coisa por um método diferente e muito mais eficaz e isto tornaria inútil prosseguir com a linha (de trabalho) anterior’. Então passamos para o terceiro salão . Lá jaziam espalhados pedaços do mecanismo, mas não vi qualquer máquina funcional. Abordei o assunto muito cuidadosamente e recebi a resposta que temia: ‘Ainda não está montada, mas eu estou trabalhando nela e levará menos tempo para completar sua montagem do que levaria para concluir a Máquina Analítica (de novo: ao que parece Moulton se refere à Máquina Diferencial) do ponto em que estava a montagem’. E eu me separei do velho homem com o coração pesaroso. “Ao morrer, alguns anos depois, não apenas não havia ele construído máquina alguma como também a opinião de uma comissão de homens bons e piedosos que foram instados a se pronunciar sobre seu legado, seja em projetos, seja em mecanismos, foi de que tudo estava demasiadamente incompleto para ser capaz de qualquer propósito útil”. No original: After a few minutes' talk, we went into the next work-room, where he showed and explained to me the working of the elements of the Analytical Machine. I asked if I could see it. 'I have never completed it,' he said, 'because I hit upon an idea of doing the same thing by a different and far more effective method, and this rendered it useless to proceed on the old lines.' Then we went into the third room. There lay scattered bits of mechanism, but I saw no trace of any working machine. Very cautiously I approached the subject, and received the dreaded answer, 'It is not constructed yet, but I am working on it, and it will take less time to construct it altogether than it would have token to complete the Analytical Machine from the stage in which I left it.' I took leave of the old man with a heavy heart. When he died a few years later, not only had he constructed no machine, but the verdict of a jury of kind and sympathetic scientific men who were deputed to pronounce upon what he had left behind him, either in papers or in mechanism, was that everything was too incomplete of be capable of being put to any useful purpose . Por melhores que fossem as intenções de Lorde Moulton e por mais piedosos que fossem seus sentimentos, o comentário acima refletia muito mais sua própria ignorância e atitude preconceituosa que qualquer incapacidade de Babbage. Porque, segundo The MacTutor History of Mathematics archive, a “comissão de homens bons e piedosos” era na verdade um Comitê nomeado pela Associação Britânica que, embora tenha afirmado realmente que o projeto estava inconcluso, acrescentou textualmente: “ para se manifestar sobre a viabilidade do projeto, registrou que sua realização bem sucedida poderia marcar época na história da computação, tão memorável quanto a introdução dos logaritmos” ( to report upon the feasibility of the design, recorded their opinion that its successful realisation might mark an epoch in the history of computation equally memorable with that of the introduction of logarithms). Note-se que o termo “computação” foi empregado na acepção corrente no início do século dezenove, basicamente um sinônimo de “execução de cálculos”, o que torna a assertiva acima bastante modesta. Na verdade, houvesse Babbage efetivamente terminado sua máquina, o impacto não seria apenas sobre a “história da computação”, mas sim de toda a sociedade moderna, correspondendo a um avanço de um século exato nas ciências da computação (termo agora empregado na acepção contemporânea). Mas se, como ficou comprovado, a fabricação de ambas as máquinas era viável mesmo com a tecnologia da época, por que ele não conseguiu terminar nenhuma? O que teria dado errado? O que deu errado Quando Babbage se dispôs a fabricar sua Máquina Diferencial jamais se havia tentado levar adiante um projeto industrial tão complexo de algo até então inexistente. Como nunca se havia fabricado nada semelhante, até mesmo parte do ferramental necessário para a tarefa tinha que ser manufaturado especialmente para ela. Portanto, estimar custos e prazos não era fácil e, considerando-se a personalidade otimista de Babbage e sua fé em seu projeto, é compreensível que tanto o prazo quanto o custo fossem objeto de estimativas otimistas. Por isso dez anos depois e milhares de libras esterlinas acima das previsões originais a tarefa ainda não estava concluída. Muito se especula sobre o que ocorreria com a Máquina Diferencial se, em 1833, o Governo Britânico tivesse fornecido o financiamento adicional solicitado por Babbage. A máquina teria sido concluída? Me mantendo estritamente no terreno da especulação, porém à luz de tudo o que aprendi sobre a controvertida personalidade de Charles Babbage, me atrevo a dizer que não. E a razão não se deve a problemas tecnológicos já que, como se viu, comprovou-se que a máquina era factível mesmo com a tecnologia de então. Deve-se, na minha opinião, à personalidade do próprio Babbage e às divergências entre seus interesses e os do Governo Britânico. Já tendo, em 1833, divisado a possibilidade de transformar o projeto de sua Máquina Diferencial no da nova Máquina Analítica, muito mais versátil e poderosa, o interesse e a motivação de Babbage para concluir a primeira certamente se esvaneceu. Em termos de hoje em dia: por que investir anos de trabalho e vultuosos recursos na fabricação de uma mera máquina de calcular se com um pouco mais de trabalho e recursos poder-se-ia fabricar um computador? Na verdade foi mais ou menos essa a mensagem que ele tentou transferir ao Governo Britânico quando, ao justificar a necessidade de recursos adicionais, mencionou suas idéias sobre a Máquina Analítica e os grandes avanços que ela representaria sobre a Máquina Diferencial. Mas não foi assim que o Governo a interpretou. A Máquina Diferencial interessava ao Governo Britânico que tinha uma aplicação imediata e importante para ela: a impressão das tábuas náuticas. Sua conclusão implicaria não apenas uma enorme economia de mão de obra como também, e sobretudo, a certeza da confecção de tabelas sem erros causados pela intervenção humana. Sua utilidade prática era imediata e importante. Mais que isso: o Governo Britânico precisava dela. Mas e a Máquina Analítica, qual seria sua utilidade? Quem precisava dela? No mundo de hoje, a resposta a esta última pergunta parece evidente: toda a sociedade precisava dela. Afinal, tratava-se do primeiro computador e não há sociedade que consiga sobreviver sem seu concurso. E no século dezenove não seria diferente (há um livro de ficção científica, “The difference engine”, de William Gibson e Bruce Sterling, editora Spectra, que considera que tanto a Máquina Diferencial quanto a Analítica foram efetivamente terminadas e descreve as alterações que causaram na sociedade Londrina de então e a luta entre os luditas e a elite intelectual provocada por elas). Mas é preciso considerar a posição das autoridades governamentais responsáveis pela concessão do financiamento. Tudo o que elas viam era um renomado matemático que havia conseguido uma importante soma para concluir em três anos um projeto de grande interesse do Governo e fracassara. E, não obstante isso, depois de dez anos e milhares de libras esterlinas adicionais, vinha solicitar mais recursos propondo alterar o projeto para fabricar em seu lugar uma máquina cuja importância eles não conseguiam perceber e que, provavelmente, consumiria outra década ou mais sem garantia de ser efetivamente concluída. Dentro desta ordem de idéias, não é difícil entender que o pedido tenha sido negado, assim como todas as solicitações subseqüentes. Tivesse Babbage se dedicado primeiro a terminar sua Máquina Diferencial, abstendo-se de introduzir “melhorias” aqui e ali que implicavam atrasos sucessivos, e caso tivesse efetivamente terminado este projeto limitado porém útil – o que se comprovou posteriormente ser perfeitamente exeqüível – é provável que, tendo em mãos um trunfo da magnitude de sua Máquina Diferencial, ele conseguisse recursos adicionais para levar adiante o projeto da Máquina Analítica. E então, gozando do respeito da sociedade como inventor bem sucedido de uma máquina limitada porém funcional e com a experiência acumulada em sua fabricação, talvez tivesse também concluído seu segundo projeto (ou, se não o conseguisse em seu tempo de vida, quem sabe seu filho Henry pudesse fazê-lo). Foi a insistência de Babbage em perseguir o melhor em detrimento do bom que acabou por impedir que qualquer das máquinas fossem fabricadas, atrasou em cem anos a ciência da computação e fez com que ele morresse debaixo de escárnio de seus pares. Tivesse ele um pouco mais de espírito prático (qualidade rara na personalidade dos gênios, bem sei), poderia ter concluído ambas as suas máquinas. E, naquela tarde chuvosa do outono de 1871, em vez da solitária carruagem que o seguia, o carro mortuário de Babbage teria atravessado multidões prostradas em homenagem a um dos maiores gênios da história da humanidade. PS: durante a edição desta série de colunas foram consultadas diversas fontes. Criar atalhos (“links”) para cada uma delas no corpo do texto, além de trabalhoso, acabaria por desviar a atenção do leitor. Optei então por listar todas elas aqui, no final da série. Recomendo a quem tiver maior interesse sobre a vida de Charles Babbage e suas máquinas, assim como sobre Jacquard e seu Tear, consultar cada uma delas. É um material interessante e digno de atenção. Bom proveito. Sobre Charles Babbage e seu Analytical Engine: “Computer: A history of the information machine”, Martin Campbell-Kelly e Wiliam Aspray, Basic Books, 1996 (sim, um livro; acreditem: ainda existem e são uma excelente fonte de informação; são portáteis, não consomem bateria, podem ser usados em qualquer local e não exigem qualquer tipo de instalação, experimentem...) The Free Online Dictionary of Computing Charles Babbage http://burks.bton.ac.uk/burks/foldoc/5/19.htm Difference Engine http://burks.bton.ac.uk/burks/foldoc/60/31.htm NSF – The history of computing http://ei.cs.vt.edu/~history/Babbage.html Wikipedia.org Analytical engine http://en.wikipedia.org/wiki/Analytical_Engine Difference engine http://en.wikipedia.org/wiki/Difference_engine Charles Babbage http://en.wikipedia.org/wiki/Charles_Babbage Fourmilab Switzerland Sketch of The Analytical Engine Invented by Charles Babbage By L. F. MENABREA http://www.fourmilab.ch/babbage/sketch.html La machine d'arithmétique http://www.fourmilab.ch/babbage/pascal.html The First Computer http://www.fourmilab.ch/babbage/ The Analytical Engine http://www.fourmilab.ch/babbage/hpb.html Babbage's Analytical Engine http://www.fourmilab.ch/babbage/hpb1910.html Passages from the Life of a Philosopher http://www.fourmilab.ch/babbage/lpae.html Maxfield & Montrose Interactive Inc - Charles Babbage's Analytical Engine http://www.maxmon.com/1830ad.htm University of Exeter - The Babbage Pages http://www.projects.ex.ac.uk/babbage/biograph.html The MacTutor History of Mathematics archive - Charles Babbage http://www-gap.dcs.st-and.ac.uk/~history/Printonly/Babbage.html Ilustrações: Allard's Computer Museum Groningen http://www.computermuseumgroningen.nl/index.html Vintage Calculators Web Museum http://www.vintagecalculators.com/html/odhner.html Sobre Joseph Marie Jacquard e seu Tear: Deutsches Museum - The pattern loom http://www.deutsches-museum.de/ausstell/meister/e_web.htm Wikipedia Jacquard weaving http://en.wikipedia.org/wiki/Jacquard_weaving Jacquard loom http://en.wikipedia.org/wiki/Jacquard_loom Bill de Hóra – The Draw Boy http://www.dehora.net/journal/2006/01/the_draw_boy.html
B. Piropo |