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B. Piropo

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24/07/2006

< Analytical Engine I: Um velho ranzinza >


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Em uma tarde chuvosa do outono de 1871 um cortejo fúnebre cortava as ruas de Londres rumando para o Cemitério de Kensal Green. Uma única carruagem, a da Duquesa de Sommerset, seguia o carro mortuário. No caixão, um homem desprezado por seus pares, esquecido pela Royal Society, a que pertencia e não se deu sequer ao trabalho de publicar seu obituário. Um homem ridicularizado pelos jornais e achincalhado pelo povo. Que, não obstante, foi um gênio.

Como todo gênio, tinha suas manias. Uma delas o expôs ao opróbrio: seu desprezo pela “música de rua”, fenômeno que infestava a Londres de seu tempo, onde viveu quase toda sua vida. Música que ele jamais cansou de vituperar em cartas que escrevia regularmente aos jornais criticando “Aqueles cujas mentes são inteiramente vazias e recebem [a música de rua] com satisfação, enchendo o vácuo de tempo”. Sua insistência rendeu-lhe enormes sofrimentos, com violinistas e todo o tipo de músicos de rua plantando-se debaixo de sua janela durante horas apenas para atormentá-lo. A coisa chegou ao ponto de uma banda se reunir para tocar em frente à sua casa por cinco horas ininterruptas e um indivíduo se dedicar a soprar um apito durante meia hora, religiosa e diariamente por meses a fio sob sua janela. Gatos mortos e outros “materiais ofensivos” eram jogados em seu jardim e, na velhice, nas raras ocasiões em que saía à rua, era seguido por uma chusma de crianças e, por vezes, adultos, gritando-lhe insultos. Certa feita teve que esquivar-se de uma turba de mais de cem pessoas até encontrar um policial para dispersá-las.

No entanto aquele velho ranzinza que seguia quase solitário em seu caixão tinha sido professor de matemática da Universidade de Cambridge e ocupara a mesma cátedra que outrora fora de Isaac Newton e recentemente pertenceu a Stephen Hawking. Foi membro da Royal Society e um dos fundadores da Sociedade Britânica para o Avanço da Ciência, da Sociedade Astronômica Real e da Sociedade Estatística de Londres. Era amigo próximo de homens da estatura de um Charles Darwin (sim, o da evolução das espécies), de um Pierre Laplace (o da transformada), de um Jean Fourier (o da série), de um Alexander Humboldt (o da corrente). Próximo ao Pólo Norte da Lua há uma cratera batizada em sua homenagem. E, embora incompreendido em sua época, foi um dos maiores gênios que a humanidade já produziu. Um gênio tão extraordinário que seu cérebro, removido após a morte e conservado por 37 anos, foi dissecado em 1908 por Sir Victor Horsley, da Royal Society, em busca dos sinais que distinguiriam a genialidade da mediocridade.

Não obstante, seu caixão seguia na chuva acompanhado por uma única carruagem.

O defunto era Charles Babbage, um homem à frente de seu tempo, o inventor de uma máquina tão avançada para a época que foi impossível construi-la com a tecnologia então disponível. Uma máquina tão complexa que somente pôde ser efetivamente montada e testada em 1991, exatos cento e vinte anos depois que seu cortejo fúnebre cortou tão tristemente as ruas de Londres. Só então foi possível comprovar-se não somente que, apesar do escárnio a que Babbage foi submetido por causa de sua máquina, ela não somente era exeqüível como funcionava exatamente como ele havia previsto mais de um século antes.

Esta máquina era a Analytical Engine, o primeiro computador efetivamente funcional concebido pelo homem.

Por que artes do destino seu inventor teve um fim tão melancólico?

O homem

Charles Babbage nasceu um dia depois do Natal de 1791 em Teignmouth, Devonshire, Reino Unido, quando a chamada “revolução industrial” dava os primeiros passos. Como John von Neumann, era filho de um próspero banqueiro, Benjamin Babbage, cuja fortuna permitiu que Charles recebesse uma esmerada instrução. Em 1810, após cursar excelentes escolas, matriculou-se no Trinity College de Cambridge, onde recebeu o título de Mestre sete anos depois. Em 1828 assumiu a famosa “cátedra Lucasiana” (a de professor de matemática) de Cambridge, onde permaneceu até 1839 sem jamais ministrar uma única aula, abandonando a Universidade para se dedicar exclusivamente à construção de suas máquinas prodigiosas. Mas antes de falar delas, falemos um pouco da fascinante personalidade de Babbage (veja-o na Figura 1 em desenho obtido na página da National Science Foundation).

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Figura 1: Charles Babbage.

Babbage não era apenas um matemático genial com profundos conhecimentos de criptografia (foi o responsável por quebrar o “código de Vigenère”, até então considerado inviolável, ajudando os militares britânicos a decifrar mensagens inimigas). Era também filósofo, industrial e um homem de grande espírito prático e enorme curiosidade investigativa.

Na filosofia, Babbage era um esteta que via beleza não só na natureza como nas coisas e obras do engenho humano como túneis, estradas e máquinas. Concebeu uma fascinante teoria sobre a gênese do Universo, publicada como um dos Tratados Bridgewater “On the Power, Wisdom and Goodness of God, as manifested in the Creation” (Sobre o Poder, Sabedoria e Bondade de Deus conforme manifestados na Criação” (mais especificamente o nono tratado) onde afirma que a interferência da onipotência e presciência divinas ocorreu apenas durante a gênese do Universo, quando Deus atuou como legislador estabelecendo as leis da evolução que, no devido tempo, dariam origem às diversas espécies, prescindindo de Sua interferência miraculosa ao longo dos séculos. Uma teoria tão extraordinária que, além de integrar o criacionismo ao evolucionismo, concebe a figura divina como “programador” do universo, algo impensável não apenas para a época como também para os dias de hoje (somente esta teoria segundo a qual Deus criou o Universo e inseriu nele um “programa”, ou conjunto de instruções, executado seqüencialmente ao longo dos séculos originando e extinguindo as espécies, programa este que prescindia de qualquer interferência divina posterior, fornece material para centenas de colunas sobre informática; afinal, pondo as coisas em sua devida perspectiva, Babbage, há dois séculos, concebeu Deus como o primeiro programador e todo o Universo como fruto deste programa e por mais herética que possa parecer, a idéia merece consideração ao menos pela originalidade e pelo contexto em que foi gerada, séculos antes da era da informática).

Babbage jamais se contentou em receber o conhecimento “pronto”. Seu espírito investigativo não o permitia. Assim, não se deu por satisfeito enquanto não foi suspenso por uma corda no interior da cratera do vulcão Vesúvio para ver com seus próprios olhos a aparência da lava derretida. E, para investigar os efeitos da exposição humana ao calor intenso, permaneceu quatro minutos em um forno aquecido a 130 graus centígrados, suportando a experiência “sem grande desconforto”. Quando era socialmente obrigado a ir ao teatro, não se contentava em assistir o espetáculo. Em suas próprias palavras: “Somewhat fatigued with the opera [Don Juan] I went behind the scenes to look at the mechanism” (cansado de assistir a ópera, eu fui às coxias para examinar os mecanismos).

Nos anos em que se dedicou, entre outras tarefas, à engenharia ferroviária, trabalhou para a Great Western Railway, uma ferrovia que cruzava a Inglaterra e era considerada uma maravilha da engenharia da época. Nesta ocasião inventou o “limpa-trilhos”, o “carro dinamômetro” (vagão capaz de aferir a força trativa de uma locomotiva) e o velocímetro. Além disto inventou ainda o oftalmoscópio heliográfico (aparelho utilizado pelos oculistas para examinar o fundo dos olhos dos pacientes).

Seu espírito investigativo o levou certa feita a contabilizar todas as vidraças quebradas em uma fábrica, do que resultou a publicação, em 1857, da “Table of the Relative Frequency of the Causes of Breakage of Plate Glass Windows” (Tabulação da freqüência relativa das causas de quebras de vidraças) na qual constatou que 14 das 464 vidraças contabilizadas foram quebradas por “homens, mulheres e rapazes bêbados”.

Uma figura notável este Babbage...

Mas o que o levou a se dedicar à construção de suas máquinas?

As Tábuas

Você precisa fazer um cálculo rápido. Mete a mão no bolso, saca sua máquina de calcular eletrônica e em questões de segundos efetua as mais cabulosas operações aritméticas. E a máquina pode ser comprada por “deiz real” no camelô da esquina.

Alguma vez você já se deu conta como eram feitos cálculos semelhantes no tempo de Babbage?

Talvez você se surpreenda, mas no final do século dezoito os cálculos eram computados, naturalmente, por computadores (na Inglaterra de Babbage, “computers”).

Não acredita? Bem, certamente trata-se de uma mera dúvida semântica. Para dirimi-la teremos que nos pôr de acordo quanto ao significado da palavra “computador”.

Ao ouvi-la provavelmente você pensa em uma máquina (e, para ser franco, também eu). Mas nos tempos de Babbage a palavra tinha outro significado. Mais especificamente, e conforme uma das acepções do Oxford English Dictionary: “Computador é aquele que computa; um calculista; especificamente: uma pessoa contratada para efetuar cálculos em observatórios, centros de pesquisa, etc.”

Em suma: computador era quem computava. Explicitando: a pessoa que computava.

É claro que os cálculos mais complexos exigiam instrumentos que facilitassem sua execução. E estes instrumentos eram as tabelas, ou “tábuas” (tanto “tábua” quanto “tabela” derivam da mesma palavra latina, “tabula”, e podem ter o mesmo significado).

Para cálculos genéricos havia as tábuas de logaritmos. Eu não sei se vocês sabem o que é isso, mas quanto a mim não somente sei como guardo carinhosamente as que usei na adolescência (que, para os menos avisados e antes que alguém decida me internar em algum lugar por senilidade, ocorreu quase um século após a morte de Babbage). Mas não se preocupem que não vou aborrecê-los com detalhes. Só o essencial: uma tábua de logaritmos é uma aparentemente infindável lista de números que permite, se usada com proficiência, substituir qualquer multiplicação ou divisão por uma soma ou subtração e qualquer potenciação ou radiciação por uma multiplicação ou divisão. Parece besteira, mas só quem precisou delas sabe como podem ser úteis.

Para quem nunca viu uma: a tábua de logaritmo nada mais é que uma longa lista de números e seus logaritmos. Quer multiplicar dois números? Entre na “tábua”, encontre seus logaritmos, some-os, e encontre o “antilogaritmo” (ou seja, o número que corresponde ao logaritmo) do resultado. Para cálculos com números inteiros de cinco ou seis algarismos a ajuda é pouca. Mas para cálculos com números de, digamos, dez inteiros e outras tantas casas decimais, ela é um bocado bem-vinda.

Isso, naturalmente, para quem não tem uma calculadora de “deiz real”. E Babbage não tinha.

Ora, mas para que as pessoas comuns possam usar uma tábua de logaritmos alguém tem que montá-la. Ou seja: a tábua propriamente dita tem que ser criada calculando “na munheca” o logaritmo de cada número. E esta era a tarefa dos computadores (os calculistas): computar as tabelas.

Babbage entendia do assunto. Tanto entendia que uma de suas mais festejadas realizações foi a publicação, em 1827, de uma tábua de logaritmos dos números de 1 a 108.000. Um feito e tanto.

Mas não havia tábuas apenas para calcular logaritmos. Havia tabelas especializadas para quase todo o tipo de cálculo complexo. E, dentre elas, as mais importantes eram as chamadas “Tabelas Náuticas” integradas aos “Almanaques Náuticos”.

Tabelas náuticas são usadas na navegação marítima, mais especificamente na chamada “navegação celestial” na qual o navegador, munido de um sextante, mede o ângulo aparente entre o horizonte e a posição de alguns corpos celestes conhecidos. Entrando com a hora fornecida por um relógio de precisão e com os valores desses ângulos em uma tabela náutica é possível determinar a posição exata da embarcação em qualquer ponto do planeta (veja, em figura obtida na página de Fernando Las-Heras da Universidad de Oviedo um sextante e o modo de usá-lo).

Figura 2: Sextante.

Na Grã Bretanha são publicados regularmente desde 1767 almanaques náuticos contendo a posição e os movimentos relativos de corpos celestes, incluindo o Sol, a Lua, os planetas e 57 estrelas escolhidas por serem as mais facilmente identificáveis.

Perceberam? São publicadas desde 1767, mais de vinte anos antes do nascimento de Babbage.

E todas elas, sem exceção, eram calculadas pelos “computadores”, os calculistas humanos, sem qualquer ajuda mecânica.

Você tem idéia de quantos milhões de cálculos são necessários para produzir uma tabela náutica? Seria possível produzir uma sem um único erro apenas recorrendo à falibilidade da mente humana? E você faz idéia das possíveis conseqüências de um erro, um único e mísero erro humano em uma tabela náutica, justamente aquele número necessário para determinar a posição de um navio em uma noite de procela?

Então pode avaliar a importância da produção de tabelas náuticas confiáveis em um país como a Inglaterra, que no século dezoito disputava a hegemonia dos mares com seus rivais europeus.

Não era apenas uma questão econômica relevante. Era matéria de segurança nacional.

Por isso cada cálculo era realizado independentemente por dois diferentes “computadores” e, antes de ser incluído na tabela, era analisado por um terceiro funcionário, o “comparador”. Que caso os resultados conferissem, autorizava a inclusão.

Dava um trabalho medonho e custava uma grana preta.

Será que não seria possível simplificar a coisa?

Charles Babbage acreditava que sim.

Eis aqui uma citação sua de 1812:

“... I was sitting in the rooms of the Analytical Society, at Cambridge, my head leaning forward on the table in a kind of dreamy mood, with a table of logarithms lying open before me. Another member, coming into the room, and seeing me half asleep, called out, ‘Well, Babbage, what are you dreaming about?’ to which I replied ‘I am thinking that all these tables’ (pointing to the logarithms) ‘might be calculated by machinery”.

(Eu estava sentado em uma das salas da Sociedade Analítica, em Cambridge, minha cabeça pendendo para a frente sobre a mesa, com ar de adormecido, com uma tábua de logaritmos aberta em frente a mim. Um colega, entrando na sala e me vendo meio dormindo, exclamou, ‘Bem, Babbage, com que você está sonhando?’ e eu retruquei: ‘Eu estou pensando que todas esta tabelas (e apontei para os logaritmos) poderiam ser calculadas por uma máquina”.

E tanto pensou que, doze anos depois, ganhou a Medalha de Ouro da Sociedade Astronômica Real “por sua invenção de uma máquina para calcular tabelas matemáticas e astronômicas”.

Mas a coluna de hoje foi sobre Babbage.

Sobre a máquina (na verdade, as máquinas) falaremos na próxima.

 

 

B. Piropo