Sítio do Piropo

B. Piropo

< Coluna em Fórum PCs >
Volte
22/05/2006

< O Rei dos Vendedores >


Dia desses peguei um táxi. Dei as instruções sobre o itinerário, o motorista respondeu educadamente, tomou o caminho indicado, colocou um CD de áudio para reproduzir e nada mais disse.

O táxi era confortável, o ar refrigerado estava ligado e as janelas fechadas. Aos poucos me dei conta que a música era “Fascination”, cantada por Nat King Cole. Um clássico para quem aprecia este tipo de música. E uma de minhas preferidas nos tempos da adolescência. E olhe que já adolesci há meio século...

O motorista continuou calado. Mas foi impossível me conter e não comentar sobre a delicadeza da música e a suavidade da voz do cantor. Cujo nome talvez seja desconhecido para alguns dos jovens membros deste Fórum. Mas, para quem passou dos quarenta, evoca um dos maiores intérpretes de seu tempo. Talvez de todos os tempos...

O motorista, uns bons vinte anos mais jovem (digo, menos velho...) que eu, afavelmente concordou que a música de fato era bonita e o intérprete excelente mas que, em sua opinião, ninguém se comparava a Frank Sinatra. Não o velho Sinatra dos últimos tempos, com a voz gasta pela idade, mas aquele dos anos cinqüenta, voz inconfundível e repertório inigualável. E a conversa seguiu por aí enquanto a corrida prosseguia.

Uma conversa agradável. O motorista exibia um extraordinário e inesperado conhecimento sobre a música americana do século passado, aquela composta antes que o barulho mais conhecido por “rock” dominasse os alto-falantes e que, juntamente com a velha MPB da mesma época, sempre foram minhas preferidas. O CD de áudio continuava tocando e a música mudou para “Unforgettable”, outro clássico da época. O que levou o motorista a chamar minha atenção para o naipe de violinos cujo brilho, intocado pela digitalização, destacava ainda mais a suavidade da voz do intérprete.

Desenrolou-se então uma conversa agradável sobre um tema interessante, que encurtava a corrida. Durante a qual me dei conta que eu não conhecia nenhum CD do Nat King Cole em que aquelas duas músicas, mais “When I fall in love”, que então se ouvia, aparecessem naquela ordem.

Que CD era aquele?

O motorista respondeu que ele mesmo o havia gravado. Como apreciava muito aquele tipo de música e tinha uma grande coleção de velhos “Long Playings”, ainda dos tempos do vinil, preparou uma coletânea no Natal passado para presentear alguns amigos que também gostavam da velha música americana.

Mas preparou como?

Ah, ele detestava música digitalizada, respondeu. Por isso ele havia remasterizado cada faixa pessoalmente, procurando manter a sonoridade original e a riqueza de harmônicos do vinil.

Havia por acaso gravado em MP3?

De jeito nenhum, retrucou. Segundo ele o MP3 é um excelente protocolo, mas sempre se perde alguma coisa com a compressão. Ele preferia o formato “CDA”, usado pelos CDs de áudio. Afinal, durante o processo de digitalização havia uma inevitável perda do “brilho” do LP original, por isso evitava a compactação dando preferência a um formato que não acrescentasse qualquer outra perda.

Nesta altura dos acontecimentos já se ouvia “My way” na genial interpretação do Sinatra dos anos sessenta e eu me dei conta que aquela era uma mui estranha conversação para ser mantida com um motorista de praça. Que ele conhecesse profundamente música americana de meados do século passado já era estranho. Mas juntar a isso um conhecimento detalhado sobre som digital e técnicas de remasterização era realmente surpreendente. Como ele gravava seus CDs? De onde vinha todo aquele conhecimento sobre digitalização?

Bem, ele gravava os CDs em seu computador. Como sempre gostou de músicas “da antiga” tinha um bom equipamento de som para reproduzir discos de vinil. E seu conhecimento de informática ajudou bastante a escolher o equipamento necessário para transpor o som para o micro. Pois, informou-me, acontece que ele era analista de sistemas.

Bem, nesta altura dos acontecimentos me dei conta do insólito da situação: eu estava sendo conduzido para o aeroporto por um motorista de táxi que era um excelente técnico de som mas que na verdade era mesmo analista de sistemas. E olhe que eu ainda não tinha ainda chegado nem perto da verdadeira vocação do homem...

Isto porque, inevitavelmente, perguntei por que ele não vendia seus CDs.

Mas como não vendia? Claro que sim, respondeu. Só de músicas americanas daquela “safra” ele havia preparado dois CDs. E prosseguiu: “se o senhor encontrar algo parecido em qualquer loja pagará mais de cem reais, enquanto eu vendo um conjunto de dois CDs com dezesseis músicas cada por vinte e cinco”. E quem comprasse o conjunto levava de brinde um terceiro CD com músicas italianas, boleros ou mais duas categorias que a surpresa me impediu de memorizar. Bastava escolher o estilo.

E vendia bem?

Ah, sem dúvida. Naquela mesma manhã (e ainda não eram onze horas) ele já havia vendido um bocado deles. E, na véspera, um de seus passageiros (clientes? fregueses? sei lá...) havia comprado dois conjuntos, um deles para presentear um amigo que na mesma noite ligou para o motorista (técnico de som? analista de sistemas? sei lá...) informando que tinha alguns discos de vinil aos quais dedicava um carinho especial e não encontrava cópias digitalizadas. Por acaso ele não os remasterizaria? Claro que sim. Por trinta pratas a unidade, garantiu o motorista/técnico de som/analista de sistemas.

Mas, considerando o panorama geral da situação, afinal ele ganhava mais dinheiro com qual de suas atividades? Conversa daqui, enrola dali, o cara acabou admitindo que o sustento vinha mesmo dos CDs. O táxi funcionava mais como ponto de venda. E um ponto de venda tão bom que agora mesmo esta coluna está sendo digitada tendo ao fundo a voz de Johnny Mathis sussurrando “Evie” em meus ouvidos.

O mais interessante de tudo isto é que em momento algum o cara tomou qualquer tipo de iniciativa. Não informou que tinha uns CDs ótimos, que ele mesmo os remasterizava e que estavam à venda. Tudo o que fez foi olhar pelo retrovisor para cara deste coroa que vos escreve, botar o Nat King Cole para tocar e ficar na moita (nesta altura dos acontecimentos me ocorre: teria ele alguma coletânea de rock que serviria de isca para passageiros mais jovens?). A partir daí fui eu quem comentei a música, perguntei que disco era aquele, quem os fazia e, finalmente, como comprar. Em nenhum momento ele me ofereceu coisa alguma nem sugeriu qualquer venda. Quando eu pedi para comprar, foi quase como se estivesse me fazendo o favor de vender.

Perceberam qual a profissão do sujeito?

Motorista, técnico de som, analista de sistema? Que nada.

O cara é o Rei dos Vendedores...

 

Agora, falando sério:

Tudo o que está escrito aí em cima é verdade e dou fé. Mas, antes de escrever esta coluna, uma dúvida me assaltou: ao divulgar o “causo” não estaria eu incentivando a pirataria?

A preocupação é justificada. Afinal, bem sei – e por experiência própria – como é desagradável ver alguém tirar proveito, seja comercializando, seja simplesmente divulgando como se fosse autor, material cuja propriedade intelectual pertence a outrem. Por isso não compactuo com pirataria, evito usar produtos piratas e não costumo divulgar qualquer iniciativa que faça apologia a este tipo de atividade.

Seria este o caso do Paulo Gilberto (o nome do Rei dos Vendedores)?

Bem, é certo que ele não dispõe da propriedade intelectual das músicas que grava. Por outro lado, pelo que pude perceber, tem tido o cuidado de reproduzir apenas músicas de seus velhos LPs de vinil, que não mais existem no mercado, mesmo digitalizados (embora se possa encontrar algumas das músicas avulsas dos intérpretes em CDs tipo “O melhor de...” fulano ou beltrano). Portanto, ele não está concorrendo diretamente com ninguém, inclusive com os detentores dos direitos de reprodução das músicas escolhidas. Mesmo porque, como todas têm mais de meio século de existência, é de se presumir que seus autores e intérpretes, os verdadeiros “donos” das músicas, integram o coro celeste e já há algum tempo alegram as paragens do além.

Então o que vende o Paulo Gilberto? Bem, para criar seus CDs ele teve um trabalho danado. E um trabalho de excelente qualidade. Para começar, é preciso um conhecimento profundo do repertório dos intérpretes gravados e um bom gosto razoável para selecionar as faixas e ordená-las de forma a gerar uma sucessão harmônica de melodias. Depois, é necessário remasterizá-las uma a uma, usando um equipamento de boa qualidade. E em seguida juntá-las e reproduzi-las em cada CD.

Portanto, ao comprar os CDs (por um preço bastante razoável, diga-se de passagem) e sem descer a detalhes sob os aspectos puramente legais, que me falta conhecimento para discutir, eu acredito estar remunerando o trabalho do Paulo Gilberto, um trabalho honesto e de boa qualidade. Daí ter decidido escrever sobre ele (mas estou inteiramente aberto a outras opiniões, todas igualmente respeitáveis).

Assim sendo, quem se interessar – mesmo que seja apenas para que ele remasterize algum velho CD que já não tem onde reproduzir – pelo trabalho do Paulo Gilberto pode encontrá-lo em seu táxi amarelo do Rio de Janeiro, final de placa 77.

Que, aliás, ele não me pediu para divulgar. E, explicito claramente me antecipando a quaisquer especulações maldosas, nem eu ganharei comissão sobre eventuais vendas resultantes desta coluna.

Que foi escrita exclusivamente pelo inusitado da situação. E para exemplificar como, nestes tempos bicudos, é possível aliar criatividade, espírito de vendedor e muito, mas muito conhecimento prático do comportamento humano, para “defender algum” de modo honesto, sem apelar para golpes, extorsão, corrupção e outros alvitres ultimamente tão em moda em escala municipal, estadual e federal...

E agora, com licença, que vou curtir a “Canzone per te” com Sérgio Endrigo que está tocando porque faz parte do meu CD de brinde...

 

B. Piropo