A Internet tornou possível coisas impensáveis há poucos anos. Um dos exemplos é o conceito “wiki”. A origem do nome é controversa, mas parece que deriva de “wiki wiki”, algo como “rapidinho” em havaiano. Mas, venha o nome de onde vier, o conceito é absolutamente revolucionário: wiki é um programa colaborativo que permite a edição coletiva de documentos.
O único exemplo que me ocorre para ilustrar o que seria um documento wiki é algo que também não existiria sem a Internet: o blog, contração de “web log”, um texto mantido por uma pessoa na Internet e no qual outras pessoas podem colaborar incluindo comentários. Pois um documento wiki é parecido. A diferença é que enquanto o blog tem um “dono”, que pode ou não aceitar os comentários ali postados, o documento wiki pode ser editado coletivamente e as novas contribuições vão imediatamente ao ar sem que seu conteúdo precise ser revisado antes da publicação. A partir do momento em que o documento wiki foi posto à disposição da comunidade de internautas, qualquer um pode dar seu pitaco, incluindo itens ou alterando o conteúdo dos existentes. Documentos deste tipo são chamados de documentos wiki abertos.
O maior, mais conhecido e certamente mais útil documento wiki é a Wikipedia. Fundada e mantida por Jimmy Wales, a Wikipedia era até recentemente uma enciclopédia aberta. Não somente pode ser consultada gratuitamente por qualquer internauta como também, aderindo estritamente aos princípios wiki, até este mês podia ser alterada por qualquer pessoa independentemente de estar ou não registrada.
Eu mesmo sou um usuário inveterado da Wikipedia. Para assuntos técnicos a versão em inglês é insuperável. Afinal trata-se de uma enciclopédia escrita presumivelmente por especialistas e revisada permanentemente por uma equipe quase infinita de outros especialistas (se alguém consulta um termo técnico e encontra um erro pode imediatamente alterar o texto eliminando qualquer impropriedade). Experimente: o URL da página principal da versão em inglês é < http://en.wikipedia.org/wiki/Main_Page >. Mas não se preocupe: se você tem dificuldade com textos em inglês, há uma versão da Wikipedia em praticamente qualquer idioma. A em português está em < http://pt.wikipedia.org/wiki/ > mas é predominantemente redigida no português de Portugal. E se você está inclinado a procurar por uma versão em português do Brasil em < http://br.wikipedia.org/wiki/ > como seria de esperar, não perca seu tempo: lá encontrará apenas a página principal da Wikipedia em degemer, uma variante do idioma bretão (daí o “br”), uma língua de origem celta ainda cultivada por alguns habitantes da Bretanha e da região do Loire, na França (eu não disse que havia uma versão para praticamente qualquer idioma? Há centenas delas em línguas tão exóticas quanto o suomi, tagalo, maori e uma misteriosíssima Bân-lâm-gú, que a própria Wikipedia me revela – assim como me revelou o que era o degemer – ser um dialeto falado no Sul da província de Fu Jian, na costa sudoeste da China).
Agora que você já sabe o que é a Wikipedia e como ela funciona, é provavel que tenha aflorado à sua mente a preocupação com a ação de vândalos. Afinal, não foi à toa que Nelson Rodrigues afirmou que “a humanidade não deu certo”. Um texto com enorme frequência de visitantes e que permite a qualquer um efetuar as alterações que lhe derem na veneta certamente há de ser o alvo predileto de beocios, boçais, mequetrefes e outras tantas categorias de patifes que infestam a espécie humana. Pois bem: é quase inacreditável, mas até recentemente coisa funcionava bem. Não que a Wikipedia fosse imune a vandalismos: havia sempre um idiota de plantão para atacá-la regularmente. Mas o software wiki não somente permite fazer alterações facilmente como permite desfazê-las com a mesma facilidade. E em geral as tolices adicionadas pelos eventuais cretinos permaneciam no ar por poucas horas e eram rapidamente removidas pelos freqüentadores habituais da enciclopédia, que revertiam o texto ao estado anterior. Um negócio mais ou menos anárquico e que, apesar disso (ou talvez por isso mesmo) funcionou por anos a fio de forma perfeitamente aceitável sem jamais ter causado qualquer incidente desagradável.
O irônico é que o primeiro foi provocado por um pobre coitado que não tinha a menor idéia do que estava fazendo.
Brian Chase era até recentemente o gerente de operações da “Rush Delivery”, uma empresa de entregas de Nashville, no Estado de Tenessee, EUA. Lá, em uma dessas sessões de “jogar conversa fora” que ocorrem nos escritórios, veio à tona o nome de Thomas Seigenthaler, falecido no ano passado, presidente de uma das empresas a que a Rush Delivery prestava serviços e que um dos colegas de Chase orgulhava-se de haver conhecido pessoalmente. Chase não sabia quem era o personagem mas, como tinha acesso aos computadores da Rush Delivery, resolveu fazer uma pesquisa na Internet sobre a família. Nada encontrou sobre Thomas, mas deparou-se com a biografia de seu irmão John, conhecido jornalista, aposentado há alguns anos que, entre outros cargos de importância, foi diretor editorial do USA Today, presidente da Sociedade Americana de Editores de Jornais e trabalhou no Departamento de Justiça americano quando o mesmo era chefiado por Robert Kennedy, de quem se tornou amigo e assistente. Em suma: um cidadão acima de qualquer suspeita, um pilar da sociedade local.
|
Figura: John Seigenthaler |
Chase encontrou tudo isto na Wikipedia, naturalmente. E este foi seu primeiro contato com ela. Achou tudo aquilo extraordinário, mas não pelas razões que normalmente impressionariam uma pessoa de espírito, digamos, menos simplório. O que lhe causou espanto foi o fato de qualquer um poder alterar seu conteúdo. Como ele jamais havia se deparado com alguma coisa séria que pudesse ser “mexida” por qualquer pessoa, acreditou que era, segundo suas próprias palavras, um sítio de “gags” (piadas, “pegadinhas”). E, dentro deste espírito, com o único intuito de provocar seu colega fazendo-o crer que seu “amigo importante” não era de uma família tão respeitável assim, em 26 de maio deste ano acrescentou informações à biografia de John Seigenthaler dando conta que ele “viveu na União Soviética de 1971 a 1984” e que “por um certo período, foi suspeito de estar diretamente envolvido no assassinato dos irmãos Kennedy, John e seu irmão Bobby, embora nada tenha sido provado”.
Foi só uma brincadeirinha. Chase não tinha a menor idéia do que estava fazendo nem das conseqüências que isso traria (uma das quais, mas não necessariamente a mais importante, a perda de seu emprego). Mas provocou uma cangancha que só vendo...
Pois acontece que por mais importante que tenha sido Mr. Seigenthaler, ao que parece sua biografia não é muito consultada. Pelo menos por alguém que tenha se dado conta do acréscimo indevido. Resultado: a calúnia permaneceu no ar por meses até que em setembro passado Victor Johnson deparou-se com ela e alertou seu amigo John. Que não somente entrou em contato com Jimmi Wales em outubro solicitando (e sendo atendido) que o artigo fosse corrigido como também, usando sua influência como ex-editor editorial do jornal, publicou no USA Today um artigo “soltando os cachorros” em cima da Wikipedia. Diz ele, no final do artigo (disponível em
< http://www.usatoday.com/news/opinion/editorials/2005-11-29-wikipedia-edit_x.htm >):
“Quando eu era criança minha mãe me deu uma lição sobre os perigos da maledicência me mostrando um travesseiro recheado com penas e dizendo: ‘se eu rasgar esse travesseiro as penas se espalharão aos quatro ventos e jamais alguém conseguirá recolocá-las novamente no travesseiro. O mesmo ocorre quando calúnias são espalhadas sobre pessoas’. Para mim, aquele travesseiro é uma metáfora da Wikipedia”. Um conceito como este endossado por alguém com o conceito de John, além de abalar a credibilidade da Wikipedia atraiu a atenção da imprensa e gerou um bocado de bochincho.
O que irritou especialmente John foram duas conseqüências do fato. A primeira é que a biografia com os acréscimos de Chase foi republicada (embora posteriormente corrigida à seu pedido) nos respeitabilíssimos sítios Reference.com e Answers.com (justificando o velho ditado que afirma que “na Internet nada se cria, tudo se copia”). A segunda foi o fato de Jimmy Wales, o fundador e responsável pela Wikipedia, admitir que não tinha a menor possibilidade de descobrir quem havia perpetrado a alteração.
Mas então como se descobriu o autor?
Bem, esta é uma história cheia de ironias. Pois ocorre que a Wikipedia também tem seus opositores. Um deles, Daniel Brandt, um ativista em defesa da privacidade, chega a manter no ar um sítio de “vigilância” sobre a enciclopédia, o “Wikipedia Watch”, em < www.wikipedia-watch.org/ >. Pois bem: o responsável pela façanha foi justamente Mr. Brandt, que de posse apenas da data, horário e endereço IP de onde foi feita a postagem, conseguiu chegar apenas até um firewall de provedor de Internet. Mas descobriu que aquele endereço IP correspondia ao de um servidor, o que indicava que provavelmente estava instalado em uma pequena empresa (grandes empresas mantêm seus servidores separados e protegidos da rede externa). Entrou diretamente com o endereço em seu navegador e foi saudado por um “Welcome to Rush Delivery”. Desconfiou que se tratava de uma empresa de Nashville, descobriu que havia, sim, uma com este nome, enviou a ela uma mensagem qualquer solicitando uma informação e a resposta veio com o mesmo endereço IP que havia feito a postagem. Quando ele e alguns jornalistas começaram a procurar a empresa para confirmar se a alteração tinha partido dela, Brian Chase se assustou e procurou John Seigenthaler para se desculpar, informando que tudo não passara de uma brincadeira sem o menor intuito de caluniá-lo ou manchar sua reputação.
John Seigenthaler acreditou na boa fé do pobre Chase e não levou o assunto adiante. O que não impediu que Chase fosse despedido da Rush Delivery (apesar do bom Seigenthaler ter intercedido a seu favor).
Mas as conseqüências não pararam aí. O assunto adquiriu tamanha relevância que no início deste mês Jimmy Wales anunciou que os novos usuários que desejarem fazer acréscimos ou alterações nos verbetes da Wikipedia deverão obrigatoriamente se registrar previamente no sítio, o que contraria frontalmente o princípio de obra aberta ao público mas, ao que parece, era a única forma de preservar a credibilidade da Wikipedia.
E houve ainda uma outra conseqüência inusitada. Com a repercussão do fato, a Wikipedia ganhou um novo verbete: “Brian Chase, profanador da Wikipedia”. Se duvida, verifique você mesmo em < http://en.wikipedia.org/wiki/Brian_Chase_%28Wikipedia_hoaxer%29 >. Mas faça isso logo, porque quando este artigo foi escrito discutia-se nos meios da Wikipedia se ele deveria ou não ser mantido no ar.
B.
Piropo