Sítio do Piropo

B. Piropo

< Jornal Estado de Minas >
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31/03/2005

< O que será o amanhã? >


Projetar, prever, especular, conjeturar, antever, prognosticar, vaticinar. Perigosos, esses verbos dedicados a adivinhar o que será o amanhã. Sempre que me pedem para conjugar um deles recorro a citações de dois filósofos, de épocas diferentes mas de igual teor. A primeira, menos conhecida, é de Horácio e faz parte das Odes, publicadas em 23 AC: “Evita indagar o que será o amanhã”. A segunda, mais popular, é de João Sérgio e faz parte do samba enredo do Grêmio Recreativo e Escola de Samba União da Ilha, entoado em 1978 DC: “O que será o amanhã? Responda quem puder”. Dar ouvidos a qualquer delas implica refugar diante do risco de tentar profetizar o futuro.

Por outro lado, na minha idade, quando se cogita de “futuro” impossível não ter em mente o sábio comentário de João Ubaldo Ribeiro: “O melhor do futuro é que não estarei nele”. O que me dá uma excelente desculpa para me meter a adivinho: quando, afinal, o futuro chegar, os acertos poderão ser celebrados por meus poucos mas bravos leitores de boa memória, enquanto os prováveis erros já não poderão ser cobrados. Então, rumo ao futuro!

Antes, porém, se impõe uma visita ao passado. Para ser preciso, ao final dos anos oitenta, quando, munido de um modem de 1.200 “bauds”, trocar mensagens com os membros de três ou quatro “BBS” fazia com que eu me sentisse na vanguarda da conectividade. Para quem não sabe: BBS é a sigla de “Bulletin Board System”, uma espécie de clube cujos membros trocavam mensagens de correio eletrônico apenas entre si através de linhas telefônicas. E “baud” é uma medida de taxa de transferência de dados que corresponde grosseiramente a um bit por segundo.

Depois, veio a Internet. Ou melhor: depois, a Internet se popularizou. Porque existir já existia há décadas. Mas era um meio de troca de dados, informações e mensagens usado principalmente por cientistas e membros do meio acadêmico. E assim continuou até 1991, quando Tim Bernes-Lee, um consultor de software da CERN, criou uma “linguagem de marcação” baseada em “hipertexto” e desenvolveu os programas necessários para seu uso, originando o conceito de “navegar” naquilo que ele mesmo batizou de “World Wide Web”, ou rede de alcance mundial. A partir de então a Internet jamais voltou a ser o que era. E em 1995 abriu-se ao público, mudando a face da sociedade.

Hoje, que tenho em meu micro uma conexão de Internet rápida (também conhecida pela execrável expressão “banda larga”) com taxa de transmissão centenas de vezes maior que a de meu velho modem dos anos 80 e que me põe em contato quase instantâneo com servidores espalhados em todo o planeta, sorrio ao lembrar dos tempos heróicos dos BBS. Tanta mudança em tão pouco tempo estava além das previsões do mais otimista dos visionários.

Mas e o amanhã? O que será o amanhã?

Bem, adivinhar é impossível. Mas tentar deduzir onde a tecnologia nos levará baseado em sua evolução nas últimas décadas, não. Senão vejamos:

Pense em duas tecnologias que não existiam até o século passado: a das telecomunicações e a da informática. Hoje, elas praticamente desapareceram. Não me interprete mal: não é que já não existam. Elas continuam por aí. Mas pense rápido e me responda: seu telefone celular pertence à esfera de qual delas? É um instrumento que lhe permite comunicar-se à distância, portanto talvez possa ser classificado como dispositivo de telecomunicações. Por outro lado, tem um microprocessador, um sistema operacional, e cada vez que você solicita uma operação singela como a rediscagem de um número, está executando um programa. Então quem sabe não seria uma máquina de processar dados, subordinada ao reino da informática? Na verdade ele é uma coisa híbrida. E, embora ainda se possa encontrar por aí alguns remanescentes das velhas tecnologias, como computadores que não estão conectados a nada e telefones ligados a redes analógicas, restam poucos que logo desaparecerão. Hoje, não há como traçar um limite entre informática e telecomunicações. Elas estão para sempre fundidas em uma nova ciência. Então é fácil prever que, no futuro, elas não somente permanecerão juntas como se disseminarão de uma forma jamais imaginada.

Isto posto, lembre de como as coisas se comunicavam. Eu cheguei a usar telefone de manivela, máquina que me abstenho de descrever por uma questão de recato. Depois, veio o serviço comutado, os telefones de disco. Com a fusão da informática e telecomunicações que comentamos aí em cima, vieram as centrais digitais,   sempre usando fios e cabos. Pelo menos até aparecerem os telefones celulares. E começarem a surgir tecnologias como WiFi, Bluetooth, infravermelho, WiMax, todas permitindo que máquinas troquem dados sem depender de qualquer ligação física. Logo, não é difícil prever que no futuro não haverá fios, cabos ou qualquer outro tipo de conexão física entre dispositivos que se comunicam. E praticamente todos os dispositivos, mesmo os mais improváveis como geladeiras e vasos sanitários, se comunicarão.

Agora, pense no tamanho. Os primeiros computadores ocupavam andares inteiros. Depois, salas. Mais tarde, tampos de mesas. Agora, cabem no bolso ou no pulso. E continuam diminuindo. A tendência é desaparecerem. E não confundam isso com “deixarem de existir”: desaparecerão porque não mais serão vistos. Ou será que quando você olha para um forno de microondas ou uma máquina de lavar programável você vê o computador que se esconde em suas entranhas? Então é fácil concluir que o futuro será povoado de computadores, tão pequenos que se intrometerão em toda a parte, em todos os dispositivos, nas roupas, nos brinquedos, nos lugares mais inusitados. Mas, como não os veremos, mal tomaremos conhecimento deles.

Mas, afinal, o que será o amanhã?

Bem, agora que já temos uma idéia da evolução tecnológica, basta pôr a imaginação para funcionar. Pronto para sonhar? Então embarque comigo em uma viagem rumo ao futuro. Digamos: para daqui a vinte anos, um porto suficientemente próximo para que vocês cheguem a ele no devido tempo, mas suficientemente distante para que provavelmente o façam sem minha companhia. O que me garante imunidade para prever sem medo de ser cobrado pelos erros já que, se eu sobreviver até lá, serei octogenário e portanto inimputável. Embarcou comigo? Ótimo.

A vantagem das viagens imaginárias é que são rápidas. Já chegamos a 2025.

Desembarque com cuidado. Estamos em um mundo em que tudo está conectado a tudo, sem fio e em alta taxa. Constelações de satélites movem informações vertiginosamente e a custo baixíssimo, uma evolução daquilo que os antigos chamavam de “Internet”, porém infinitamente mais ampla, mais poderosa, mais rápida. E transparente: ninguém toma conhecimento dela, da mesma forma que os antigos raramente pensavam na complexa estrutura de distribuição de energia elétrica quando acendiam a luz. Ela simplesmente estava lá, nas tomadas, como se fosse coisa natural.

Essa imensa rede de comunicações funciona como um sistema nervoso em escala planetária. Raramente pensamos nela e quando o fazemos nos referimos a ela como “a máquina” (da mesma forma que os antigos se referiam a ela como “a Internet”). Isso porque, como ela é consiste de uma rede de bilhões de computadores interligados, que vão desde supercomputadores até relógios de pulso, seu poder computacional conjunto é quase infinito. E como ela dispõe de dados e informações sobre todas as pessoas e coisas do planeta, é capaz de tomar decisões com extrema precisão. Por exemplo: ela acabou com a fome. Quando constata a escassez de grãos na África Central, aumenta a produção de soja no cerrado da América do Sul e providencia que o excesso desta produção seja encaminhado para onde é necessário. Com isso, toda a produção de bens do planeta, de alimentos a telefones, de aço a brinquedos, passou a adotar o conceito “just-in-time”: a oferta é ajustada e distribuída de acordo com a demanda. E sem interferência humana: tudo feito pela “máquina” que antigamente era conhecida por “Internet”.

Confuso nesse mundo novo e desconhecido? Não se preocupe, você não corre o risco de se perder. A máquina sempre sabe onde você está. E não porque praticamente todo dispositivo que carregamos conosco dispõe de GPS (Global Positioning System), também interligado à máquina. Afinal, qualquer pessoa pode pegar um desses dispositivos e tentar se fazer passar por você. Mas não conseguirá em virtude da evolução de um hábito desenvolvido pelos antigos, o uso de “câmaras de segurança” em bancos, saguões de entrada de edifícios públicos e privados. Essas câmaras agora são microscópicas e estão em toda parte. E como tudo está interligado a tudo, elas mantêm contato permanente com um gigantesco banco de dados de fisionomias gerenciado pela máquina. Esteja você onde estiver, imagens de seu rosto são continuamente captadas por uma dessas câmaras e enviadas à máquina. Com a evolução da tecnologia de reconhecimento de fisionomia, sua posição exata no planeta é continuamente monitorada, 24 horas por dia, sete dias por semana. Não se preocupe, você logo se habituará a isso. E usufruirá das vantagens. Por exemplo: fez compras? Basta levá-las para casa. Quando passar pelo portal de saída da loja ou supermercado, a máquina registrará cada item (dotado de um chip RFID, coisa velha de mais de vinte anos), computará a despesa e, tendo reconhecido sua fisionomia, debitará o total de sua conta. Ou fará soar um alarme no caso de falta de fundos que o levará diretamente à barra dos tribunais. Será simples assim. Dinheiro, cartões de crédito, nada disso existe hoje. Nem senhas ou coisa parecida. Sua presença, real ou virtual, é suficiente para fazer qualquer transação financeira e a autorização dada em viva voz, gravada na hora pela máquina juntamente com sua fisionomia, é toda a comprovação necessária.

Vai a algum lugar? Entre no seu carro. Não se preocupe em dirigir, apenas informe o destino. Sim, ao carro: ele reconhecerá sua voz e não somente se recusará a ser “dirigido” por outra pessoa sem sua autorização como poderá manter uma conversação com você – o que não é novidade, pois hoje qualquer dispositivo é capaz disso, da televisão à pia da cozinha. Atualmente, todos os utensílios passam no “teste de Turing”, ou seja, não lhe permitem saber se está conversando com uma máquina ou com um humano. Mas, voltando ao carro: ele se porá em movimento, encontrará o caminho e sensores distribuídos em seu exterior ajustarão a velocidade, impedindo colisões, o levando ao destino em segurança e no menor tempo possível. Isso, naturalmente, orientado pela máquina, que otimizará o trajeto em função da distância e do volume de tráfego em cada via.

Vai para casa? No trajeto você poderá ligar o microondas para que seu jantar esteja descongelado quando lá chegar, ligar o ar condicionado, solicitar à padaria da esquina que leve sua sobremesa preferida e, enquanto viaja, pôr o correio eletrônico em dia. Tudo isso, naturalmente, se comunicando com a máquina via voz. Os teclados desapareceram há anos.

Aliás, vale a pena comentar essa evolução. Há vinte anos havia computadores capazes de interpretar a voz humana e responder algumas perguntas elementares através de programação. A isso se chamava “inteligência artificial”. Há quinze, havia milhões de máquinas se comunicando entre si (naquela época, através do que os antigos chamavam de “Internet”) e com os humanos, mas apenas em inglês, sendo capazes de manter uma conversação quase coloquial. Há dez anos, já eram poliglotas, se comunicavam sem fio e seu baixo custo as havia tornado universais, sendo usadas para educação, entretenimento e trabalho. Somente nos últimos cinco anos é que elas uniram suas capacidades de processamento, se transformando naquilo que hoje conhecemos como “a máquina” para gerir as atividades sociais e econômicas do planeta.

Depois do jantar, não esqueça de sua aula. Escolas? São coisas do passado. Acabou a educação formal. O processo hoje é contínuo e exige uma permanente reciclagem. Toda residência ou escritório tem um “ambiente de imersão” conectado à máquina. Lá ocorre algo parecido com o que os antigos chamavam de “realidade virtual”, porém muito mais sofisticado. Entre nele, ligue os sensores a seu corpo (a última novidade são os sensores de sabor aperfeiçoados; os de odor já são coisa do passado) e assista sua aula. É claro que o professor pode estar em qualquer parte do planeta e seus colegas de turma espalhados por todo o mundo. Mas isso não lhe impedirá de interagir com a turma: suas perguntas são respondidas na hora pelo professor e comentadas pelos colegas. Terminada a aula, se assim o desejar, você pode permanecer no ambiente de imersão a assistir uma peça de teatro ou a um jogo de futebol (mas talvez não valha a pena: hoje em dia os times africanos ganham todas). Se preferir, pode assistir do próprio palco ou de dentro do campo. Mas se a aula foi de história, por exemplo, e versou sobre a segunda guerra mundial, você pode fazer uma revisão participando pessoalmente de uma reconstituição da invasão da Normandia no Dia D. Ou explorar uma cratera de um vulcão ativo (não esqueça de atenuar os sensores de calor). Ou uma viagem ao fundo do mar. As possibilidades são virtualmente infinitas...

Com as facilidades de transporte e com a distribuição de mão de obra controlada “just-in-time” pela máquina, seus amigos se espalharam por todo o planeta. Não obstante você os visita regularmente, sempre recorrendo ao ambiente de imersão, você em sua casa, eles nas deles. Namorar assim também pode, naturalmente. Mas esse é o único campo em que prevalecem os saudosistas que preferem o jeito antigo.

A maior parte do trabalho é feito em casa, mas por questões puramente sociais algumas reuniões ainda se fazem no escritório. Como você não precisa dirigir seu carro até lá, pode aproveitar o trajeto para ler o jornal do dia. Mas não mais em papel. Você carregará sempre consigo uma tela de cristal líquido de alta definição, dobrável e, evidentemente, conectada á máquina. Nela você pode ler o jornal – cujas ilustrações não mais serão fotos, mas filmes – ou, se preferir, qualquer obra literária dentre os bilhões de publicações disponíveis na máquina. Ou assistir um filme, conversar com um amigo distante vendo sua imagem na “tela”, ver um show musical... O que lhe der na telha.

Suas roupas são feitas de um tecido especial no qual se incrustam dezenas de microprocessadores. Alguns têm a função de regular a temperatura, sempre mantida em um nível confortável não importando o ambiente em que se esteja. Outros controlam sua localização. Outros ainda monitoram seus sinais vitais, como pressão sanguínea, temperatura, teor de açúcar no sangue, coisas assim, enviando os dados diretamente para a máquina, que os insere em seu prontuário médico. No caso improvável de algum acidente ou agressão, assim que for constatado qualquer sangramento, a própria roupa providenciará socorro que, quando chegar, já disporá de seu prontuário médico. E não há porque se preocupar: não haverá dificuldade de encontrar o local do acidente já que a máquina sempre sabe onde você está.

A medicina de hoje é formidável. Exames de DNA são tão corriqueiros como eram antigamente os de sangue. Não há mais cirurgias exploratórias: em caso de necessidade, o paciente é submetido a um tomógrafo (claro, computadorizado; hoje em dia, tudo é computadorizado) que não somente faz uma varredura completa de seu corpo como também constrói um modelo idêntico, permitindo que a cirurgia seja feita no modelo. Tudo isso supervisionado pela máquina. E você não vai mais ao consultório: exames médicos, inclusive os de toque, são feitos no ambiente de imersão.

É claro que com tanta informação e contato – real ou virtual – com tanta gente, a vida pode ficar confusa. Não se preocupe: use óculos. Os meus estão permanentemente ligados à máquina através de dispositivos sem fio e microprocessadores embutidos nas hastes. Quando encontro alguém que não reconheço, microcâmaras de vídeo incrustadas na armação registram sua fisionomia e consultam o banco de dados da máquina. Em menos de um segundo as informações essenciais sobre a pessoa são projetadas diretamente na lente dos óculos. Já me livrei de muito chato graças a eles...

Mas nem tudo são flores. Ontem, por exemplo, estava eu sentado no banheiro, posto em sossego lendo sobre as últimas novidades tecnológicas em minha tela dobrável de alta definição quando fui alvo de uma horrorosa diatribe sobre os péssimos hábitos alimentares que tenho adotado ultimamente. Resultado de um exame realizado “just-in-time” no, ahn, digamos, produto de minha atividade, coletado, imediatamente analisado e com os resultados submetidos ao escrutínio da máquina. E quem me deu a bronca, vejam vocês, foi meu próprio vaso sanitário.

Pode um negócio desses?

B. Piropo