Sítio do Piropo

B. Piropo

< Jornal Estado de Minas >
Volte
30/12/2004

< O Gigante Cambaleia >


Em 1980, no mercado dos computadores pessoais, o palco estava pronto, cenário erguido, coadjuvantes em cena aberta. Só faltava a entrada em cena do personagem principal.

O sucesso de vendas do Apple II, Commodore PET e TRS-80, o aparecimento de novos fabricantes de computadores pessoais como Atari e Osborne e, sobretudo, o advento da planilha de cálculos VisiCalc, tinham alçado aqueles brinquedos de hobistas à categoria de máquinas de escritório (ou “business machines”). Portanto era natural que despertassem a atenção da IBM cuja sigla, é bom lembrar, esconde o nome “International Business Machines”.

É fato que a primeira tentativa da IBM para comercializar computadores de pequeno porte não foi o PC. Antes dele houve o SCAMP (“Special Computer APL Machine Portable”), um projeto de 1973 que não “vingou” mas que serviu de base para o IBM 5100, um computador “portátil” que pesava 25 kg , custava entre US$ 8.975 e US$ 19.975 dependendo da configuração e dos acessórios e acabou dando origem a toda uma linha que incluiu os modelos 5110, 5520 e 5120 (veja as características técnicas, com fotos de todos eles em
< www-03.ibm.com/ibm/history/exhibits/pc/pc_1.html >).
Mas nenhum merecia a classificação de computador pessoal. Eram máquinas IBM típicas, voltadas para o mercado corporativo. Na verdade a IBM abrigava entre seus empregados muito poucos interessados em micros pessoais. Uma das exceções era Frank Cary. Que não passaria mesmo de exceção não fora uma circunstância peculiar: era o presidente da empresa.

Cary se lembrava da relutância com que a IBM entrou no mercado dos “minicomputadores”, máquinas cujo menor poder computacional (e preço dezenas de milhares de dólares menor) que os computadores de grande porte  fabricados pela IBM não pareciam representar ameaça a seu domínio do mercado. E lembrava também que muitas das pequenas empresas que compraram minicomputadores dos concorrentes (dos quais o maior era a DEC) haviam crescido e, mantendo a fidelidade a seu fornecedor original, aproveitavam o sistema operacional, programas e pessoal treinado, comprando nele as máquinas de grande porte que o crescimento tornara necessárias. Agora, sim, “mordendo” o mercado da IBM. E não queria assistir a um fenômeno semelhante na liça dos computadores pessoais. Portanto decidiu entrar nela. E se a IBM ia entrar em alguma coisa, que fosse em grande estilo.

Cary designou para tocar o projeto um dos “caciques” da empresa, Bill Lowe, chefe dos laboratórios de Boca Raton, que tornou-se sede do projeto “Chess” (xadrez, o jogo), cuja missão era desenvolver em apenas um ano um produto que viria revolucionar não apenas a indústria da informática como a sociedade em que vivemos. Seu nome de código era “Acorn” (fruto do carvalho, cujo formato fez com que o nome também fosse usado para designar um tipo de válvula eletrônica usada em dispositivos de alta freqüência, o “acorn tube”). Mais tarde viríamos a conhecê-lo como “IBM PC”.

Lowe assumiu o projeto em 1980, quando a luta da IBM para se livrar da acusação de monopólio movida pelo Governo dos EUA se arrastava por mais de dez anos e ainda não havia terminado. Este fato exerceu influência fundamental no projeto e fez Lowe tomar duas decisões que contrariavam as tradições da IBM mas, ainda que involuntariamente, moldaram o futuro da “linha IBM PC”: a adoção de uma arquitetura aberta e a terceirização do sistema operacional.

A primeira delas contrariou a prática centenária de verticalização vigente na IBM, acostumada a fabricar desde os circuitos integrados até as teclas, gabinetes e interruptores de seus produtos. Devido não somente à urgência do projeto como também ao receio de que a criação de um produto inteiramente proprietário viesse a reforçar a acusação da prática de monopólio, Lowe decidiu que a nova máquina usaria apenas componentes “de prateleira”, ou seja, encontrados no mercado da eletrônica. Um deles, o principal, seria o microprocessador 8088 da Intel, uma involução do i8086. Repito: uma involução, não evolução. A arquitetura interna do i8088 era idêntica à do 8086 com exceção do número de linhas de dados do barramento que o ligava à memória principal, reduzido a oito das dezesseis linhas do i8086, o que diminuía significativamente o desempenho porém facilitava a busca dos circuitos auxiliares para controle do barramento de dados (os computadores pessoais da época eram todos máquinas “de oito bits” com barramento de dados de oito linhas). Mas mesmo assim o i8088 fez com que o IBM PC, ao ser lançado, fosse o primeiro computador pessoal “de dezesseis bits” (tamanho de seus registradores internos e dos operandos de sua unidade lógica e aritmética) e, com sua freqüência de operação de 4,77 MHz, o de melhor desempenho do mercado.

Empregar apenas componentes de prateleira fez do IBM PC uma máquina de “arquitetura aberta”. A única coisa que, segundo presumia a IBM, impediria que fosse livremente copiada era a patente do BIOS (Basic Input Output System), o sistema básico de entrada e saída sobre o qual falaremos adiante. Felizmente – inclusive para a própria IBM – ela estava enganada.

A decisão de terceirizar o sistema operacional foi motivada pelas mesmas razões que levaram à arquitetura aberta: a pressa e a acusação de monopólio. Sua história inclui um fato controverso que já se incorporou ao folclore da informática pessoal: a recusa de Gary Kildall ao convite da IBM para desenvolver o sistema operacional do PC. Kildall era o dono e o “cérebro” da Digital Research, uma empresa já bastante conhecida por haver desenvolvido um sistema operacional para discos, o CP/M (Control Program for Microcomputers), e o haver adaptado para os computadores pessoais da época, o que a tornou a escolha natural da IBM para fazer o mesmo para o PC. É certo que em 1980 Kildall foi procurado por representantes da IBM para discutir o assunto. Sobre o que ocorreu então, há duas versões. Segundo a primeira, na data aprazada os emissários da IBM esperaram em vão por Kildall , que os esnobara para passear em seu avião particular e, ofendidos, retornaram a Boca Raton, partindo para uma solução alternativa. Segundo a outra, mais verossímil, Kildall havia realmente saído em seu avião mas não a passeio: fora resolver o problema técnico de um cliente (não havia muita gente capaz disso na época, portanto não é de estranhar que o presidente da empresa assumisse pessoalmente o suporte técnico) e repassara aos advogados da DR e à mulher, Dorothy, encarregada dos assuntos comerciais e financeiros da empresa, a tarefa de discutir o acordo com a IBM. E consta que os termos propostos pela IBM foram considerados comercialmente inaceitáveis pela DR, que os recusou, o que levou a IBM a procurar a alternativa (de qualquer maneira, a Digital Research desenvolveria alguns anos mais tarde um sistema operacional para a linha PC, o DR-DOS, que na sua versão 5.0 chegou a abocanhar 25% do mercado lá pelo final dos anos noventa).

A alternativa foi encontrada entre os já envolvidos no projeto Chess, uma pequena empresa de Seattle contratada para desenvolver o BASIC para o futuro PC (não se esqueça que naquela época quase não havia programas comerciais, portanto todo computador pessoal tinha que ser vendido com uma linguagem de programação “embutida” para que seu feliz proprietário desenvolvesse seus próprios programas; no caso do PC essa linguagem era um BASIC gravado em um chip de memória ROM que, quando não era encontrado durante a inicialização do micro, fazia com que ele travasse e apresentasse a mensagem de erro “No ROM BASIC” que, perdida nas entranhas dos BIOS de algumas máquinas de hoje, aflora de quando em vez assustando os “ténicos” que não sabem do que se trata).

Essa empresa era a Microsoft. O mero detalhe que ela não tinha um sistema operacional para PCs nem sabia desenvolvê-lo não impediu que seu dono, Bill Gates, fechasse o negócio. Assumido o compromisso com a IBM, só faltava o sistema operacional prometido. E Gates o achou em uma pequena empresa de sua terra natal, a Seattle Computer. O sistema chamava-se QDOS (“Quick and Dirty Operating System”; em inglês a expressão “quick and dirty”, que significa literalmente “rápido e sujo”, é usada para designar coisas feitas apressadamente e sem muito cuidado, tipo “em cima na perna”) e tinha sido desenvolvido por um engenheiro da Seattle Computer chamado Tim Patterson. A Microsoft pagou a Rod Brock, dono da Seattle Computer, vinte e cinco mil dólares para usar o sistema e mais tarde acrescentou cinqüenta mil para deter a exclusividade (alguns anos depois, quando se deu conta da besteira que tinha feito, Brock moveu uma ação contra a MS e conseguiu um milhão adicional, uma migalha se comparado aos lucros que o bom e velho QDOS recauchutado trouxe à MS). Feitas algumas alterações aqui e ali, estava pronto o MS-DOS. Um ano depois Patterson deixou a Seattle Computer e foi trabalhar na Microsoft.

Pronto. No final de 1980, já com praticamente tudo decidido e encaminhado, Bill Lowe deu por finda sua participação e foi para Minnesota em busca de uma promoção, deixando o projeto Chess nas mãos competentes de Don Estridge, que o levou a cabo. E alguns meses mais tarde, precisamente em 12 de agosto de 1981, uma original campanha publicitária cujo protagonista era o “vagabundo” representado por Carlitos (Charlie Chaplin) no filme “Tempos Modernos” mostrava como aquela máquina poderia ajudar um cidadão comum a se livrar das armadilhas montadas pela tecnologia hostil. Uma campanha propositalmente dúbia, voltada tanto para o usuário doméstico quanto para o pequeno empresário, magistralmente ilustrada pelo “vagabundo”, que marcou o lançamento da nova máquina, batizada pela IBM de “PC”, iniciais de “Personal Computer”, ou computador pessoal (na verdade o nome “oficial” era IBM PC 5150). Mil e setecentas delas foram despachadas para as cadeias de lojas Sears e Computerland (outra ruptura dos cânones da IBM, que jamais havia deixado terceiros comercializarem seu produtos). Vinham com 64 Kbytes (sim, quilobytes) de memória principal, acionadores de disco flexível opcionais (o dispositivo de armazenamento padrão era a fita cassete) e custavam US$ 2.880 (veja a foto de uma unidade original com dois acionadores de discos flexíveis em < www.computercloset.org/IBMPC.htm >). Venderam mais que bolinho quente.

Tamanho sucesso não era esperado por ninguém – muito menos pela IBM, que estimava vendas cinco a oito vezes menores e teve enorme dificuldade em atender os pedidos. De setembro a dezembro de 81 as vendas atingiram a 40 milhões de dólares. Em pouco mais de um ano a máquina tornou-se o padrão da indústria e justificou a edição de dezenas de revistas especializadas. E em dezembro do ano seguinte veio a consagração suprema: pela única vez em sua história a revista Time escolhia como “Homem do ano” não um homem, mas uma máquina (veja a capa da edição histórica em < www.hnf.de/museum/pcahnengalerie_en.html >). E justificava: “Há ocasiões em que a força mais significativa no noticiário anual não é apenas um indivíduo, mas um processo... O Homem do Ano da Time de 1982, a maior influência para o bem ou para o mal, não é um homem... Trata-se de uma máquina, o computador... O PC de cor creme lançado em agosto de 81 pela IBM determinou um padrão de excelência para a indústria”. Era a glória.

Há alguns parágrafos eu disse que a arquitetura aberta do PC e a terceirização de seu sistema operacional moldaram o futuro da “linha IBM PC” mas não disse porque. A razão, no entanto, é simples: elas permitiram o surgimento dos clones. E foram os clones que garantiram a sobrevivência da “linha IBM PC” até os dias de hoje.

Um clone é uma máquina que parece um IBM PC, roda os programas do IBM PC, usa o sistema operacional do IBM PC mas não é um IBM PC: é fabricado por um concorrente. Pela descrição, parece um produto pirata. Mas não é. E as razões de não ser são justamente a arquitetura aberta e o sistema operacional terceirizado.

Quando eu disse que a IBM se fiava na patente do BIOS como garantia contra cópia disse também que voltaria ao assunto. Pois aqui estamos. BIOS, sistema básico de entrada e saída, é um conjunto de rotinas que permite que os programas, através do sistema operacional, se comuniquem com (e controlem) os periféricos, ou dispositivos de entrada e saída. Essas rotinas vêm gravadas em um “chip” de memória apenas para leitura (ROM). Quando um programa quer acionar, por exemplo, o disco flexível, encaminha um pedido sob a forma de uma “solicitação de serviço” para o sistema operacional, um programa que controla a máquina. O sistema operacional, por sua vez, encaminha o pedido codificado ao BIOS. E o BIOS, que faz parte da máquina (já que está gravado em um chip da placa-mãe), acessa o acionador de discos e devolve ao sistema operacional a informação solicitada, que é repassada ao programa, executando assim o “serviço”. Isso vale para todos os periféricos (dispositivos de entrada e saída, E/S ou I/O, de Input/Output). Sem os “serviços” do BIOS a máquina não funciona.

Ora, o sucesso do PC fez com que os concorrentes se interessassem em fabricar máquinas compatíveis, ou clones. Como os componentes eram “de prateleira” e poderiam ser interligados da mesma forma que a IBM os interligou, tudo o que faltava era um sistema operacional e um BIOS idêntico ao da IBM (ou, pelo menos, que se comportasse de forma idêntica). Ora, idêntico não era possível devido à patente. Mas nada impedia que um concorrente (a Compaq fez isso) reunisse uma equipe de programadores que desconhecessem completamente o código do BIOS patenteado da IBM, fornecesse a eles os programas mais populares do PC e uma cópia do sistema operacional MS-DOS e os pusesse a estudar cada código de solicitação de serviço e cada resposta fornecida pelo BIOS. Assim, após um gigantesco trabalho de engenharia reversa, conseguiram desenvolver um BIOS completo, totalmente diferente do da IBM mas capaz de prover exatamente os mesmos “serviços”. E a IBM nada podia fazer contra isso, já que sua patente não fora violada. Depois, surgiram empresas dedicadas exclusivamente a desenvolver BIOS para o PC, das quais a mais popular foi a Phoenix, e uma porção de livros foram escritos sobre o assunto. Resultado: qualquer fabricante poderia produzir um micro absolutamente compatível com o IBM PC: bastava comprar o BIOS da Phoenix e o sistema operacional da Microsoft, que o desenvolveu para a IBM mas teve o bom senso de reservar para si os direitos autorais. Assim nasceram os clones, cujas vendas explodiram lá pela metade da década de 80. E quanto mais clones eram vendidos, mais o mercado crescia e mais máquinas a IBM vendia.

Poe que os clones garantiram o futuro da linha PC? Simples: até então, quem comprasse um micro, ficava dependente do fabricante. Se o bicho parasse de ser fabricado, ninguém mais se interessaria em desenvolver programas para ele, que acabaria virando um elefante branco. Mas ninguém precisava se preocupar com a saúde do fabricante de seu micro com os clones do PC produzidos por firmas do porte da Compaq, HP, Dell, Leading Edge e Gateway (a segunda comprou a primeira; e as duas últimas, em seus dias de ouro, chegaram quase à liderança do mercado dos clones e mais tarde desapareceram sem causar nenhuma turbulência, justificando o que digo sobre os clones). Morreu? Paciência. Enquanto o micro funcionasse, tudo bem. Pifou? Basta substituir por um clone, preservando o investimento em software e treinamento de pessoal. Não é de admirar que vinte e três anos após seu lançamento, com a IBM abandonando um mercado que há muito já não liderava, a “linha IBM PC” continue viva e forte, com o número de máquinas em funcionamento atingindo a casa dos bilhões e crescendo a taxas de mais de cem milhões de novas unidades por ano. Tudo isso garantido pelos clones.

A liderança da IBM no mercado de PCs continuou impávida até os idos de 1986, ano do lançamento do microprocessador Intel 386, quando o gigante começou a cambalear. Uma série de decisões equivocadas motivadas pelo excesso de auto-suficiência, lentidão no processo de tomada de decisões, avaliações erradas sobre as reações dos usuários, arrogância ou simples empáfia erodiram sua participação no mercado de PCs. Talvez a mais estapafúrdia tenha sido o lançamento da “linha PS/2” uma linha de computadores – perdão, “sistemas” – pessoais que rompia completamente com os padrões que a própria IBM havia estabelecido para os PCs, mudando inclusive o barramento de entrada/saída para o MCA (MicroChannel Architecture) cuja adoção exigiria que os usuários trocassem todas as placas controladoras de seus periféricos – além de patenteá-la, o que impedia a fabricação de clones. A indústria reagiu, transformou o barramento criado – e não patenteado – pela própria IBM para o AT (sucessor do PC) em padrão da indústria, dando-lhe o nome de ISA (Industry Standard Architecture) e fez com que ele atraísse a preferência do mercado. Isso e mais meia dúzia de asneiras de igual quilate praticadas pela IBM na condução do projeto PS/2 liquidaram com ele. Daí para a frente, a IBM nunca mais se aprumou no mercado dos PCs. Histórias tristes que melhor é não contar.

Mas assim é a vida: algumas vezes se está por cima, outras por baixo. Em 1985, no auge de seu domínio do mercado, a IBM tinha 400 mil empregados e faturava 50 milhões de dólares anuais. Em 1992 sua fatia do mercado de PCs não passava de 15%. Em 1993 gerou o maior prejuízo jamais registrado por uma empresa privada em todo o mundo. E agora, depois de uma severa reestruturação que acabou por tirá-la do vermelho, acaba de vender toda a sua divisão de computadores pessoais para a chinesa Lenovo, decretando o fim de sua participação no mercado dos computadores pessoais.

Assim começou, transcorreu e terminou a era IBM PC.

Eu sei, meninos, porque eu vi...

B. Piropo

PS1: para escrever os dois artigos desta série, além de minha memória cansada, consultei a Internet e, entre outros, os livros “Computer Wars”, de Charles Ferguson e Charles Morris, da Random House, e “Computer – A History of the Information Machine”, de Martin Campbell-Kelly e William Aspray, da Basic Books.

PS2: finda-se 2004, com suas dores e alegrias. Para todos nós, um 2005 com mais alegrias e menos dores. Até lá.