Sítio do Piropo

B. Piropo

< Jornal Estado de Minas >
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23/12/2004

< Era uma vez... >


...em um reino muito distante, além e acima da linha do Equador, há muito, muito tempo atrás, em uma época em que nem havia computadores pessoais, um gigante muito poderoso chamado IBM.

Seu poder era tanto que ninguém ousava desafiá-lo. Seus rivais, mesmo com nomes retumbantes como Burroughs, Sperry Rand, NCR, Control Data, RCA, Honeywell e General Electric, eram conhecidos como “os sete anões” porque, juntos, não conseguiam faturar a metade do que faturava o gigante. Que, como se não bastasse ser gigante, continuava crescendo: durante os anos sessenta manteve uma taxa de crescimento anual entre 15 e 20 porcento, passando de um faturamento de 1,8 bilhões de dólares e pouco mais de cem mil empregados (eu disse que era um gigante...) para um faturamento de 7,2 bilhões de dólares e mais de 250 mil empregados no final da década. Naqueles dias seu carro chefe era o System 360, um computador de grande porte tão revolucionário para a época que nem a metade dos nove mil pedidos recebidos nos dois primeiros anos após seu lançamento pôde ser atendida pela IBM. E fez crescerem ainda mais o faturamento e o poder do gigante, que até então jamais deixara de abocanhar mais de dois terços do mercado mundial de computadores.

No início dos anos oitenta o mercado já havia aprendido a acompanhar atentamente os movimentos do gigante que ditava o rumo da indústria de informática. Para onde ia ele, o mercado o seguia. Em 12 de agosto de 1981 ele ingressou em um mercado que até então tinha desprezado por achar quase insignificante: o dos computadores pessoais. E o fez com o costumeiro ímpeto devastador: em poucos meses sua presença já era tão maciça que a maioria dos micros pessoais, mesmo os não fabricados por ele, eram classificados como membros da “linha IBM PC”. O lançamento do IBM PC marcou, portanto, o início de uma nova era.

No início deste mês, mais precisamente no dia sete, um burocrático  comunicado à imprensa emitido conjuntamente em Armonk, New York , EUA, e Beijing, China, onde se localizam a sede das duas empresas, confirmava o boato que há semanas corria à boca pequena no mercado de informática: a IBM vendera para a chinesa Lenovo sua divisão de computadores pessoais (leia o comunicado em
< http://www-1.ibm.com/press/PressServletForm.wss?MenuChoice=pressreleases&TemplateName=
[na mesma linha:]ShowPressReleaseTemplate&SelectString=t1.docunid=
[na mesma linha:] 7450&TableName=DataheadApplicationClass&SESSIONKEY=
[na mesma linha:] any&WindowTitle=Press+Release&STATUS=publish
>).
O gigante, cabisbaixo, retirava-se do mercado onde reinou soberano durante mais de uma década. Sem dúvida, um triste final da era iniciada em agosto de 81.

Artigos de fim de ano geralmente se voltam para a frente: o que se espera do ano entrante, para onde se moverá o mercado, que tecnologias eclodirão. Em suma: são exercícios de futurologia. Mas é impossível entender o presente e prever o futuro quando não se conhece o passado. Este artigo foi escrito para celebrar os 23 anos da era da IBM no mercado dos computadores pessoais. Os antecedentes remontam a 1969 quando Ted Hoff, um jovem e brilhante engenheiro da Intel, recebeu a incumbência de projetar o conjunto de circuitos integrados encomendados pela japonesa Busicom para equipar uma calculadora eletrônica científica, a grande novidade tecnológica da época. A Intel, embora se dedicando ao projeto e fabricação de circuitos integrados, tinha como principal atividade a produção de circuitos de memória. E Hoff percebeu que, usando a tecnologia desenvolvida pela Intel para suas memórias, seria possível armazenar, juntamente com seus operandos, os comandos da futura calculadora sob a forma de “instruções” de software em um único “chip”. Assim, em vez de um circuito integrado para executar cada operação, ele poderia projetar um único circuito, genérico, que dependendo da “instrução” recebida executaria tal ou qual operação com os operandos armazenados na memória. E assim foi feito. O resultado foi o “chip” Intel 4004, ou i4004, cuja fabricação teve início em 1971, o primeiro circuito integrado programável. Infelizmente, quando o chip ficou pronto, a Busicom já tinha se convertido em mais uma vítima da guerra dos preços das calculadoras eletrônicas do início dos anos setenta e a Intel acabou devolvendo os 60 mil dólares que dela havia recebido para criar o produto em troca dos direitos sobre o novo chip, o primeiro processador de uso geral. Seu lançamento, em novembro de 1971 marcou um momento histórico: vinha à luz o primeiro microprocessador da história da informática. A publicidade da Intel na revista Electronics News anunciava “uma nova era da eletrônica integrada” e mencionava a e expressão “computer on a chip” (“computador em um único circuito integrado”), que ficou famosa desde então. O novo componente passou a ser vendido por cerca de mil dólares a unidade. Embora desde seu lançamento fosse possível projetar e montar um computador pessoal baseado no i4004, foi necessário o esforço conjunto de usuários amadores e militantes do movimento pela liberação da computação (“computer liberation”) para que a primeira máquina a merecer esse nome – se é que realmente mereceu – fosse criada. Afinal, é bom lembrar que data desta época – mais precisamente de 1977 – a hoje famosa frase de Ken Olsen, Presidente da Digital Equipments Corporation, a poderosa DEC, afirmando peremptoriamente que “Não há razão alguma para que qualquer pessoa tenha um computador em casa” (“There is no reason for any individual to have a computer in his home”). Então, quem se interessaria por possuir uma máquina dessas nos anos setenta? A maioria dos interessados era composta pelos “computers hobbyists”, pessoas que trabalhavam na indústria da informática operando ou programando computadores de grande porte e que desejavam ter em casa algo para aprimorar seus talentos e matar sua curiosidade técnica. Que ficaram tremendamente excitados ao lerem a matéria de capa do exemplar de janeiro de 1975 da revista Popular Electronics anunciando o Altair 8800, o primeiro computador construído em torno de um microprocessador, no caso o 8080 da Intel, um descendente direto do pioneiro i4004. Quem estiver interessado ainda pode ler o artigo original da Popular Electronics e examinar fotos e características do Altair 8800 em The virtual Altair Museum , < www.virtualaltair.com/ >. Se o fizer, verá que ele em nada lembra aquilo que hoje se conhece como um computador pessoal. O bicho era apenas uma caixa metálica contendo o processador, 256 bytes de memória (sim, bytes, não é erro de digitação) e circuitos auxiliares, sem teclado nem monitor. Para programá-lo era necessário ajustar laboriosamente um conjunto de interruptores situados no painel frontal e tudo o que se obtinha após a execução de um programa era a alteração do padrão de “leds” piscantes, seu único dispositivo de saída. Talvez isso lhe decepcione, mas para os hobistas de então, acostumados a entrar dados em seus computadores de grande porte usando cartões perfurados e receber a saída através de um teletipo, o Altair era uma festa. O micro era fabricado por uma pequena firma de Albuquerque, Novo México, EUA, denominada MITS cujo proprietário, Ed Roberts, ele mesmo um hobista, vendia por reembolso postal por US$ 395 um “kit” para montagem do Altair e por US$ 450 o micro já montado. O sucesso foi tão impressionante que apenas nos primeiros três meses após o lançamento Roberts recebeu encomendas no valor de mais de um milhão de dólares e organizou o primeiro evento “mundial” sobre o Altair 8800. Dentre os palestrantes do evento, destacavam-se o próprio Roberts e dois obscuros programadores que haviam desenvolvido o BASIC, a primeira linguagem de programação para o Altair, Paul Allen e um adolescente meio abusado que fez de sua palestra uma diatribe sobre a pirataria de software. Chamava-se Bill Gates e veio a desempenhar papel fundamental na indústria da informática. Nos dois anos que sucederam seu lançamento o Altair deixou de ser um brinquedo para hobistas e passou a um produto comercial. Foi nessa época que surgiram as primeiras revistas especializadas, como Byte e Popular Computing, e apareceram as primeiras lojas dedicadas à venda de computadores, como ByteShop e ComputerLand que, em poucos anos, transformou-se em uma cadeia nacional. O aparecimento do Altair fez brotar uma vicejante indústria paralela de periféricos que fabricava desde teclados e monitores até acionadores para discos flexíveis e impressoras. E deflagrou o aparecimento de dezenas de competidores, alguns criados em torno do próprio i8080, porém mais poderosos e amigáveis. É desta época o aparecimento dos computadores IMSAI, Cromenco, North Star e Vector, hoje apenas nomes perdidos na poeira da história. Mas foram eles que marcaram o início da indústria de computadores pessoais. E ensejaram o aparecimento da primeira corporação que sobreviveria até os dias de hoje. Na verdade não era exatamente uma corporação, mas apenas uma firmeca abrigada na garagem da casa do pai de um dos dois jovens hobistas que a criaram em 1976, Steve Jobs e Stephen Wozniac. A máquina que produziam usava um microprocessador da Motorola, então a maior concorrente da Intel, o Mostek 6502. Era uma máquina rústica, pouco mais que uma placa de circuito impresso abrigando os componentes básicos, sem teclado, vídeo ou qualquer outro acessório, inclusive fonte de alimentação. Chamava-se Apple (consta que em homenagem à gravadora dos Beatles) e pouco mais de duzentas unidades foram vendidas. O suficiente para comprovar que havia um mercado para aquele tipo de produto e incentivar Stephen Wozniak a desenvolver aquilo que foi o primeiro microcomputador digno desse nome: o Apple II, um micro que continha em um só gabinete os componentes eletrônicos e o teclado. E enquanto Wozniak o criava, Jobs se dedicava à árdua tarefa de conseguir capital para começar sua produção em escala industrial. Ambos foram bem sucedidos e o Apple II, juntamente com o Commodore PET, foi lançado na Feira de Computadores da Costa Oeste em abril de 1977. Enquanto o PET foi relativamente bem sucedido, o Apple II foi um estouro de vendas – embora custasse US$ 1.298 sem o monitor. E, em agosto de 1977, a Tandy, através de sua subsidiária Radio Shack, lançava seu TRS-80, mais um computador pessoal digno do nome (dadas as limitações da época, bem entendido). Estava enfim estabelecida em bases relativamente firmes a indústria dos computadores pessoais. Uma indústria de hardware já suficientemente suculenta para irrigar a florescente indústria do software que, no início, comercializava praticamente apenas jogos eletrônicos. A coisa começou a mudar quando um jovem estudante de administração de Harvard decidiu substituir por um Apple II o computador de grande porte que usava em um esquema de tempo compartilhado (“time sharing”) como ferramenta de análise financeira. Para facilitar sua tarefa, ele se associou a um amigo programador, Bob Frankson, que o ajudou a materializar uma idéia interessante: um programa de computador que se comportasse como uma planilha de cálculos em papel, com a diferença que os cálculos seriam efetuados pelo próprio computador. O produto, denominado VisiCalc, veio a ser a primeira planilha eletrônica. Foi  lançado em dezembro de 1979 e seu sucesso imediato fez com que os computadores pessoais, com todas as limitações da época, entrassem na vida corporativa, transformando Bricklin em uma figura histórica. Se você quer ter uma idéia da aparência de Dan Bricklin nos anos 90, visite a seção “Gente” de meu sítio, em < www.bpiropo.com.br > e veja uma foto dele a meu lado. Bricklin, a figura histórica, é o de barba, sorridente, o mais jovem dos dois. Um ano depois, em 1980, o mercado dos computadores pessoais, embora incipiente, dava evidentes sinais de uma enorme potencialidade. E enquanto isso, o que fazia a gigante IBM? Ela estava quase inteiramente devotada a uma batalha judicial iniciada em 17 de janeiro de 1969 quando, sob a acusação de monopólio, o Procurador Geral dos EUA solicitou seu desmembramento. Um processo que se arrastou por treze anos, custou à IBM perto de um milhão de dólares (o Prof. Frank Fisher, um consultor contratado pela IBM para fornecer subsídios técnicos para sua defesa no processo, batizou seu iate de “The Section 3” , aludindo à seção básica da legislação americana antitruste que lhe proporcionou meios para comprá-lo). Processo que acabou dando em nada, arquivado em junho de 1983 com um melancólico despacho do então Procurador Geral informando que “não tinha mérito”. Mas teve uma influência fundamental na forma como a IBM se comportaria daí em diante no que toca a seus novos projetos, muito especialmente no que diz respeito ao IBM PC. O lançamento do IBM PC, concebido justamente em 1980, quando a batalha judicial ainda não havia se encerrado, marcaria a entrada no mercado dos computadores pessoais. Uma entrada tão retumbante que não cabe neste artigo. Mas tenha um pouco de paciência que eu conto. Prometo que até o final deste ano vocês saberão como se desenrola a história que acabou com a divisão de computadores pessoais da IBM nas mãos da Lenovo. Uma história com passagens quase épicas. E enquanto esperam, vivam um Natal feliz e tranqüilo, cheio de presentes, alegria, afeto e paz.

B. Piropo