< Jornal Estado de Minas >
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11/11/2004
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< Orwell Errou Vinte Anos > |
Em 1949 o escritor britânico George Orwell, cujo nome de batismo era Eric Arthur Blair, publicou sua obra de maior sucesso, o clássico da ficção científica denominado “ 1984”. O livro, leitura obrigatória para qualquer um que se interesse por tecnologia, era um libelo contra a então crescente burocratização da sociedade e descrevia um futuro no qual o governo, representado pelo “Big Brother”, um ente fictício porém onipresente, tudo sabia sobre cada cidadão e interferia diretamente em suas vidas, monitorando todos os seus movimentos. O “futuro” era o ano de 1984, que dava nome ao livro. Aqueles que, como eu, o leram nos anos cinqüenta (do século passado, vejam só como o tempo voa...) e atravessaram 84 em relativa segurança e quase anônimos, não contiveram um suspiro de alívio: afinal, as previsões de Orwell estavam erradas. Hoje já dá para perceber que o erro foi de apenas vinte anos. Senão, vejamos. Semana passada publiquei um artigo sobre o pagamento de despesas miúdas usando o telefone celular. Nela, descrevi uma tecnologia denominada RFID (“Radio Frequency ID Chips”) que adota minúsculos circuitos eletrônicos (“chips”) que usam sinais de radiofreqüência para emitir dados que podem ser captados em um raio de alguns metros (o artigo, com a descrição da tecnologia RFID, permanece disponível na seção “Escritos/Artigos no Estado de Minas” de meu sítio, em < www.bpiropo.com.br >). Se desejar informações mais detalhadas sobre a tecnologia RFID e suas vantagens, visite o sítio da EPC Global, em < www.epcglobalinc.org/ >, uma organização criada especialmente para difundir seu uso. Embora pareçam “coisa do futuro”, chips RFID já estão sendo usados correntemente. Semana passada, a ECS Holdings, uma das maiores distribuidoras de produtos eletrônicos de Singapura, Ásia, anunciou que já usa a tecnologia para monitorar o armazenamento e tráfego de seus produtos em todo a ilha. E não é coisa pouca: a empresa movimenta um estoque de mais de setenta milhões de dólares americanos (veja artigo de Aloysius Choong em < http://news.zdnet.com/2100-1035_22-5431013.html >). E já há alguns anos é permitido em alguns países da Europa, como a Inglaterra, a aplicação subcutânea de chips RFID para identificação de animais de estimação, algo assim como uma “coleira eletrônica”. Ou seja: em bicho e coisa, o uso da tecnologia já é corriqueiro. Até aí, tudo bem, como diria o cara que caiu do trigésimo andar ao passar pelo terceiro. O problema é que esses chips estão chegando perigosamente perto da gente. A começar pelos passaportes. Também na semana passada um artigo de Lars Pasveer em A decisão européia foi tomada em virtude da determinação do Governo dos EUA que, a partir de 26 de outubro de 2005, para entrar no território americano, todo cidadão natural de um país isento da exigência de visto deva portar um passaporte com dados biométricos “machine-readable” (capazes de serem lidos por uma máquina). Uma solicitação que, por sua vez, é fruto da política americana de fornecer esse tipo de passaporte a seus próprios cidadãos. Para isso o Departamento de Estado dos EUA (o correspondente ao nosso Ministério do Exterior) já solicitou propostas a diversas empresas de tecnologia de ponta para fabricar seus “passaportes eletrônicos” com um chip RFID contendo dados de identidade do portador, sua foto e características biométricas digitalizadas. A distribuição desses passaportes terá início dentro de alguns meses no Estado da Califónia e até o final de 2005 mais de um milhão deles já deverão ter sido emitidos. O Governo dos EUA espera que em dez anos todos os passaportes americanos contenham um chip RFID. O objetivo declarado é dificultar a falsificação do documento e facilitar a tarefa das autoridades de imigração, já que um passaporte destes nem precisa se exibido ao oficial de imigração: sua simples passagem em frente a um sensor basta para exibir em um monitor os dados pessoais e a foto de seu proprietário e validar sua identidade comparando a fisionomia capturada por uma câmara de vídeo (e eventualmente a impressão digital capturada em um sensor eletrônico) com os dados biométricos armazenados no chip. Mas, em se tratando de um chip RFID que emite permanentemente dados que podem ser captados por sensores situados em um raio de alguns metros, nada impede que seja usado para rastrear o indivíduo (ou, pelo menos, seu passaporte) em qualquer região onde se implemente uma rede de sensores. Mas isto não é tudo. Há menos de um mês a poderosa FDA (Food and Drugs Administration), órgão do Governo dos EUA que regula questões relativas a saúde, autorizou a implantação subcutânea de chips RFID em humanos. Os chips, que adotaram o nome comercial “VeriChip”, são fabricados pela empresa Applied Digital (< www.adsx.com/ >) e a autorização, por enquanto, se limita a uso médico. O VeriChip é implantado no tecido gorduroso do braço de pacientes e pode dar acesso a informações como identidade, tipo sanguíneo e histórico médico. A tecnologia é mais simples do que parece, já que as informações não estão armazenadas no chip, que contém apenas um número de identificação transmitido por radiofreqüência para um escaner ligado à rede de computadores do hospital. É nela que estão armazenados os dados. O alvo principal são pacientes portadores de mal de Alzheimer, diabetes, doenças cardiovasculares e outras que exigem tratamento complexo. Segundo artigo de Alorie Gilbert, em < http://news.zdnet.com/2100-9584_22-5408223.html >, os EUA não são o primeiro país a usar os chips RFID para fins médicos. No México, mais de mil pacientes já foram submetidos ao implante e o Ministério da Saúde italiano está testando a tecnologia em alguns hospitais. Mas o ponto realmente controverso emerge de um outro fato também citado no artigo de Gilbert: no México, o Procurador Geral e mais de duzentos membros de sua equipe já implantaram o VeriChip exclusivamente para fins de identificação e permissão de acesso a áreas onde documentos confidenciais são arquivados. Parodiando o personagem humorístico: é aí que mora o perigo. Imagine que dentro de algum tempo o implante de chips RFID venha a substituir, por exemplo, a carteira de identidade. Há quem advogue esta medida por questões de segurança. De fato, quem tiver implantado um desses chips e viver em uma região dotada de uma eficiente rede de sensores (e, não se iluda, se a moda “pegar”, toda cidade e a maioria das estradas serão dotadas destas redes ligadas a computadores centrais) ficará praticamente imune a seqüestros. E será praticamente impossível usar cartões magnéticos de terceiros para efetuar transações financeiras. Em contrapartida, em um cenário como esse, não há como impedir que autoridades governamentais, democráticas ou não, sejam capazes de traçar todos os movimentos de qualquer cidadão, honrado ou não. Em suma: é o Big Brother com vinte anos de atraso. Não é à toa que os defensores da privacidade estão começando a reclamar. Mais que isso: a se organizar. Um bom exemplo é a CASPIAN (“Consummers Against Supermarket Privacy Invasion and Numbering”, consumidores contra a numeração e invasão da privacidade dos supermercados). Ela se volta especificamente contra o uso dos chips RFID não apenas em humanos, mas também em objetos. Se você está interessado em conhecer suas razões, vale a pena visitá-la em < www.nocards.org/ >. Assim como sua congênere “Stop RFID”, em < www.spychips.com/ >, um sítio cheio de informações sobre os perigos que se escondem atrás desses minúsculos chips. Compare seu conteúdo com o da EPC Global, citada no início do artigo, e perceba como opiniões podem divergir sobre o mesmíssimo assunto... Sugiro se manter informado sobre ele. Mas, seja qual for sua posição filosófica, uma coisa é certa: já existe tecnologia mais que suficiente para criar um mundo no qual o Big Brother se estabeleça soberano. Se isso ocorrerá ou não, dependerá da reação da sociedade ao uso das novas tecnologias. Se você ainda não sabe de que lado está, é bom tomar partido. Porque eu até admito que, por uma questão de comodidade e aparente segurança, se adote deliberadamente a opção de ser escravo de máquinas ou governos (sem mencionar religiões). Desde que, naturalmente, se tenha plena consciência disso... B. Piropo |