Sítio do Piropo

B. Piropo

< Mulher de Hoje >
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08/1995

< Traduttore traditori >


Se tem uma coisa que sempre me irritou é tradução malfeita. Por isso, quando posso, dou preferência a ler o original. Ainda que escrito em um idioma que conheço mas não domino, como o francês. Mesmo com as lacunas de meu conhecimento, creio que assim chego mais perto daquilo que o autor quis exprimir que lendo uma tradução de má qualidade. Pois, com o original nas mãos, sempre posso recorrer a dicionários ou amigos com maior domínio do idioma que o meu para destrinchar um ou outro trecho importante que meus parcos conhecimentos não foram suficientes para entender. Já com uma tradução malfeita, tudo o que posso fazer é tentar adivinhar.

Isso me fez nutrir por muito tempo uma certa antipatia pelos tradutores. Antipatia que cultivei até poucos anos. Especialmente por tradutores que cometem barbaridades como traduzir a legenda do ícone da lente de aumento (que nos programas gráficos aciona a função de aproximar a imagem) de “magnifying glass” para “copo magnífico”. Ou os que traduzem “buffer” para armazém. Armazém de dados, vejam só. Ou ainda por aqueles que usam a tradução para alardear sua própria e duvidosa erudição. Insistindo, por exemplo, em traduzir “byte” para “octeto”. Afinal, no universo da informática, byte todo mundo sabe o que é. Já octeto, francamente...

Mas o tempo e a experiência foram aos poucos minando a antipatia. Primeiro porque a vida me brindou com a amizade de uma extraordinária figura humana, mestre Paulo Wengorsky. Que, sendo um tradutor profissional, acabou por me aproximar de seus colegas. Através dos quais aprendi como é duro e difícil o mister de traduzir. Cheguei a fazer uma palestra para uma platéia só de tradutores e a sessão de debates que se seguiu foi das mais instigantes pelo nível das perguntas. Gente finíssima, os tradutores.

Depois, porque o acaso fez de mim um tradutor bissexto quando na redação do Globo (onde assino um par de colunas no caderno de informática) aparecia um telex de uma agência de notícias sobre algum acontecimento que devia ser noticiado naquela edição, sem tempo de ser enviado ao tradutor profissional. Nessas ocasiões a urgência obrigava quem estivesse disponível a traduzir. E algumas vezes me coube a ingente tarefa. Foi assim que descobri que traduzir um telex de uma página dá mais trabalho que escrever uma coluna inteira. E, apesar de continuar reclamando das traduções malfeitas, transformei em respeito a antipatia que nutria pelos tradutores. Pois entendi que a imensa maioria desses profissionais faz um excelente trabalho, enquanto a maior parte das traduções malfeitas é fruto da ação de pilantras que se metem a traduzir profissionalmente sem competência para tal. Por isso sempre recusei liminarmente todas as propostas que recebi para traduzir livros de informática: aceitando, além de tomar indevidamente o trabalho de um profissional, provavelmente não faria um trabalho tão bom quanto o dele.

Mas toda regra tem exceção. Há algumas semanas solicitou-me uma editora justamente que traduzisse um livro de informática. Não, obrigado, respondi. Primeiro, porque não me julgava com competência para tanto. Depois, porque eu não era do ramo e a editora por certo estaria mais bem servida com um tradutor profissional. Se quisessem eu até poderia indicar um dos melhores.

Eles sabiam disso, respondeu a simpaticíssima jovem com quem eu falava pelo telefone. Mas aquele era um caso particular. Porque o livro, embora sobre informática, não era um livro técnico. Era um livro, digamos, humorístico. E nesse caso especial, mais importante que a tradução exata era o estilo. E eles, já havendo lido minhas colunas, achavam que meu estilo (ora vejam só, até então eu nem sabia que tinha um) era bem humorado e combinava exatamente com o do autor do livro. Será que eu não gostaria de ao menos dar uma olhada?

Fiquei curioso. E, como vocês bem sabem, a curiosidade matou o gato: resolvi, sem compromisso, verificar do que se tratava. E foi assim que me dei mal.

Passei na editora e folheei o livro. O bichinho é menor que um livro de bolso. Tem pouco mais de cem páginas. Trata da aplicação da lei de Murphy (aquela que diz que “se algo pode dar errado, dará”) aos computadores. Um texto leve, inteligente, cheio de malícia, com alguns trechos absolutamente hilariantes. Resultado: amor à primeira vista. E acabei por aceitar a incumbência.

Agora não tenho mais um minuto livre: sobra um tempinho, sento-me ao computador e ponho-me a traduzir compulsivamente. O texto é tão agradável que a tarefa é puro prazer. Exceto quando me deparo com um trecho especialmente espirituoso, onde além das palavras há que traduzir a intenção, o sentimento, o “espírito da coisa”. Uma tarefa diabólica. Que por vezes, de tão difícil, beira o impossível.

E que transformou o respeito que eu já tinha pelos tradutores na mais profunda admiração.

B. Piropo