Sítio do Piropo

B. Piropo

< Mulher de Hoje >
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03/1995

< RPG >


Eu costumo dizer que computador é coisa séria, ferramenta de trabalho, e não foi feito para jogar joguinhos. Mas também costumo dizer que certos jogos de computador são tão instigantes que não há como resistir. Portanto não vejo nada demais em jogar um joguinho de vez em quando. O segredo é não exagerar.

Porque o problema é que jogo de computador também vicia. E, quando você se dá conta, não quer saber de mais nada: é sentar em frente ao teclado, ligar a máquina, carregar um jogo e esquecer da vida. Especialmente se o jogo é um RPG.

Nunca ouviu falar? Então eu explico. RPG são as iniciais de Role Playing Game. Um jogo no qual você participa de uma aventura. Tipo conto de fadas, com princípio, meio e fim. Cada jogador assume a identidade de um personagem. As linhas gerais da história são traçadas por um "mestre", que dirige as principais ações, mas o enredo muda conforme as reações dos diversos personagens. RPG não é um jogo desenvolvido para computador. Ao contrário: há clubes cuja única finalidade é jogar RPG. São feitas reuniões, distribuídos os papeis e os participantes se empenham em partidas que podem durar dias. A única vantagem do computador é que com ele você pode prescindir dos parceiros e jogar sozinho. Ou melhor: jogar com o computador. Você escolhe um personagem, o computador assume as personalidades de todos os demais e começa a partida. Que também pode durar dias. Mas não necessariamente seguidos: a qualquer momento você pode "congelar" o jogo em uma dada situação, gravar seu estado no disco rígido e prosseguir mais tarde ou em outro dia.

Os RPG têm me proporcionado momentos de intenso divertimento. Não jogando, é claro: por mais que os aficcionados jurem que não, acho aquilo um enorme desperdício de tempo. Me divirto ouvindo as conversas dos jogadores (ou acompanhando suas discussões pelas BBS, o que dá no mesmo). Parecem coisa de maluco (e nunca encontrei ninguém que fosse capaz de me provar que não são mesmo). Você ouve frases do tipo: "para se livrar do monstro você precisa pegar a dinamite no quarto do bruxo, atrai-lo para o elevador, subir com ele até o último andar e fazê-lo explodir com você dentro". Um negócio muito louco. E muito divertido para quem está fora do contexto do jogo.

Tenho um amigo que é cirurgião. Aliás, uma pessoa notável: médico, micreiro, professor de eletrônica e ex-andarilho. Uma figura e tanto. Ele mesmo, embora micreiro de longo curso, não é dado a jogos tipo RPG. Mas seu assistente é. E é do tipo compulsivo. Tanto que, na ocasião em que ocorreu o fato que narro adiante, ele estava empenhado em uma partida de RPG que já durava mais de ano. Partida cheia de peripécias, na qual representava o papel de Avatar, heróico personagem, amigo do rei, que se empenhava em salvar o reino de Britannia.

Sabendo que meu amigo também era micreiro, o assistente costumava pô-lo a par do que acontecia no jogo nos momentos que antecediam as cirurgias que praticavam juntos. Acertados os detalhes, o tempo que sobrava enquanto a paciente era preparada gastava-se em conversas inconseqüentes, no mais das vezes sobre a longa partida que, nessa altura, meu amigo já acompanhava com indisfarçável interesse.

Mas acontece que jogadores de RPG costumam se embevecer de tal forma com o jogo que, quando narram suas peripécias, assumem de fato a personalidade do personagem que representam. E contam seus feitos na primeira pessoa.

Diz meu amigo que um belo dia estavam eles na sala de cirurgia, de máscara, luva e tudo o mais a que tinham direito, já ao lado da paciente que seria operada, uma jovem senhora. E tiveram que esperar alguns minutos enquanto o anestesista resolvia um pequeno contratempo com o instrumental. Nada de sério, coisa boba. Mas havia que aguardar um pouco, médicos, enfermeiras e paciente. E o assistente aproveitou o interregno para prosseguir seu relato. E lascou lá:

"Afinal, consegui ser admitido na confraria dos ladrões! Não foi fácil: para entrar, exigiram-me o cinto cerimonial. Mas o cinto estava em poder de Poenix, aquela ladra que vive nos subterrâneos do castelo de Lord British. Eu tentei comprá-lo, mas ela se negou a vender. Tentei negociar, mas ela foi irredutível. Por mais que eu prometesse, não consegui dobrá-la. Pedi, adulei, roguei, e nada. E quanto mais me rebaixava, mas ela se mantinha inflexível. Não houve como convencê-la. Numa situação dessas, o que me restava fazer? Eu não tinha alternativa: o cinto era essencial para mim, eu não poderia prosseguir sem ele. Era a única saída. Resultado: tive que matá-la. Contrafeito, é verdade, mas não teve jeito: matei a mulher para conseguir o cinto".

Nesse momento, enquanto concordava que, dadas as circunstancias, de fato seu assistente tinha mesmo assumido a atitude mais correta, meu amigo olhou para a paciente. A pobre, deitada inerme e indefesa na mesa de operações, já meio grogue sob efeito do início da anestesia, porém ainda inteiramente lúcida, estampava na fisionomia o mais puro terror. Afinal, aquela discussão, que ela acompanhava atentamente, era travada entre os dois alucinados que iriam operá-la dentro de minutos.

É certo que ele ainda tentou explicar do que se tratava. Mas, a julgar pelo olhar esgazeado da pobre mulher enquanto mergulhava pouco a pouco na inconsciência provocada pela anestesia, ele não garante ter sido muito bem sucedido.

Como eu disse, ouvir conversa de jogador de RPG pode ser extremamente divertido. Mas, sem dúvida, depende muito das circunstâncias...

B. Piropo